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O dogma da reforma agrária

Por Antônio Márcio Buainain e José Maria da Silveira
Atualização:

Passados 15 anos do relançamento da reforma agrária (RA), ainda no mandato de Itamar Franco, é oportuno recolocar o assunto em discussão desde duas perspectivas: um balanço do que foi feito e, a partir daí, o futuro da reforma agrária. Reconhecendo, de partida, a importância dada ao tema nos debates sobre o desenvolvimento e as políticas públicas no Brasil, percebe-se que não é trivial avaliar a reforma agrária. Há uma forte polarização que substitui a análise objetiva dos fatos - baseada em números, em evidências comprovadas, na compreensão da dinâmica econômica e social e de projeções consistentes - pela defesa ou ataque intransigente a partir de pontos de vista previamente definidos, quase dogmas. Seria preciso convencer, antes de tudo, que a realidade do campo mudou e que os pressupostos do debate devem incorporar tanto a realidade dos assentamentos quanto as características atuais da agricultura brasileira. Um claro obstáculo ao debate franco e objetivo é a confusão em torno dos números da RA. Até mesmo informações mais simples em qualquer política pública, como o número de famílias beneficiadas, não estão disponíveis com transparência e objetividade. Os dados oficiais, divulgados quase sempre como notícia, e não em relatórios técnicos de execução, como deveria ser regra para programas públicos, são duramente questionados pelo MST, principal aliado do governo. O último estudo abrangente - Radiografia da Reforma Agrária - é de 2002 e a fotografia não era nada boa. As carências de infraestrutura identificadas revelavam os problemas de uma política implementada a toque de caixa, sob pressão dos conflitos, que impedia ações planejadas e baseadas em critérios técnicos de alocação de recursos públicos. Nada mudou desde então. O cidadão tampouco é informado sobre os gastos com o programa de reforma agrária. Sabe-se que são vultosos. Contabilização feita por José Garcia Gasques, do Ipea, mostra que entre 2000-2007 as despesas em Organização Agrária passaram de R$ 2,19 bilhões, em 2000, para R$ 4,78 bilhões, em 2007, um aumento real de 118,7%. Em 2007, apenas as despesas com obtenção de imóveis rurais foram de R$ 1,4 bilhão; o crédito para RA absorveu R$ 1,61 bilhão; e as despesas de Extensão Rural para RA totalizou R$ 517 milhões. Qual o custo de uma família assentada? A informação sobre gasto por beneficiário é essencial para qualquer análise séria de política pública. Ainda que toda decisão de política pública tenha um componente político, não é possível alocar recursos escassos em função apenas das pressões e sem considerar custos, resultados e usos alternativos. Também é preciso saber quem são os beneficiários da RA, qual a composição das famílias, de onde vêm, qual a experiência de vida e de trabalho. É indispensável ter essas informações, tanto para controlar os vazamentos e desvios de benefícios como para a tomada de decisões. Não é suficiente afirmar que são famílias pobres e tratar a pobreza como passaporte automático de acesso às políticas públicas. A pobreza é heterogênea até mesmo em relação à carência e à exclusão, e por isso mesmo o perfil é determinante da dinâmica e do êxito de programas públicos nos quais o beneficiário não é um mero receptor passivo, mas um produtor, um empreendedor rural. O controle social é certamente indispensável para melhorar a seleção de beneficiários da RA, mas não desobriga o Estado de conhecer e controlar o processo, até porque as organizações sociais não são imunes a distorções, falhas de comportamento e transgressões abertas das normas. Isso remete à reflexão sobre o sentido e o futuro da reforma agrária. O programa atual tem muitos objetivos: eliminar o latifúndio, redistribuir e reduzir a concentração de terra, criar ocupação para a população rural, estimular a produção de alimentos e fortalecer a agricultura familiar. Esses objetivos, que só na aparência são convergentes, implicam definições e estratégias de política bem diferentes no que se refere à seleção de beneficiários, localização dos assentamentos, características das terras, configuração produtiva, tempo de execução e recursos necessários e afetam a própria concepção da RA. A essa agenda incorporou-se uma visão mítica e europeizada de agroecologia, tema que merece um artigo à parte. Está mais do que na hora de romper o dogma da reforma agrária e discuti-la seriamente, sem medo até de chegar à conclusão de que o próprio conceito está superado. *Antônio Márcio Buainain (buainain@eco.unicamp.br) e José Maria da Silveira (jmsilv@eco.unicamp.br) são professores do Instituto de Economia da Unicamp

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