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O Mercosul de hoje não serve

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Por Rolf Kuntz
Atualização:

De repente, imaginem só, os principais negociadores da Rodada Doha sentam-se em volta da mesa com uma forte disposição de chegar a um acordo. Faltarão, naturalmente, algumas concessões de lado a lado, e nenhuma delas será muito pesada para o Brasil. Como agirá a diplomacia brasileira, se mais uma vez o governo argentino se opuser a qualquer concessão razoável na área industrial? O cenário propício à conclusão das negociações globais de comércio é só uma hipótese muito otimista, neste momento, mas não chega a ser uma alucinação. Esse objetivo foi incluído no comunicado final da reunião de chefes de governo do Grupo dos 20 (G-20), em Washington, no sábado. Também foi defendido, nesta semana, pelos 47 dirigentes de megaempresas do Fórum Europeu de Industriais, num encontro em Istambul. A conclusão da Rodada Doha tem sido uma das bandeiras do ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, convertido em defensor da liberalização global do comércio. Ele tem falado sobre o assunto dentro e fora do Brasil e voltou a discuti-lo na reunião de Washington. Estará disposto a aceitar com resignação mais um fracasso, nas próximas semanas, se houver uma chance real de entendimento? O problema seria bem menos complicado se o Mercosul não fosse, formalmente, uma união aduaneira, mas apenas uma zona de livre comércio. Nesse caso, qualquer dos países membros poderia assinar acordos comerciais sem ficar limitado pelo compromisso da Tarifa Externa Comum (TEC). Isso não garantiria, naturalmente, a conclusão da Rodada Doha. O Brasil e dezenas de outros países poderiam chegar a um acordo, mas bastaria um voto discordante para enterrar o jogo. Esse voto poderia ser, por exemplo, da Índia ou da Argentina. Mas cabe a pergunta: o governo argentino enfrentaria o custo político de barrar uma negociação dessas proporções, na última hora, se tivesse de fazê-lo sozinho, sem partilhar a responsabilidade? Hoje é muito difícil, se não impossível, evitar a partilha dessa responsabilidade. O Brasil não pode assumir os compromissos da Rodada Doha sem levar em conta sua condição de membro de uma união aduaneira. Se qualquer sócio do bloco rejeitar uma cláusula do acordo, todos os demais ficarão amarrados. Terão de levar em conta as normas comuns em relação ao comércio com parceiros de fora. Seria possível, é claro, pensar num acordo com obrigações diferenciadas por algum tempo, se todos os demais envolvidos na rodada concordassem (a Organização Mundial do Comércio, a OMC, tem 153 membros). Mas, para aproveitar essa chance, o Mercosul teria de avacalhar ainda mais a já desmoralizada TEC. Se o Mercosul fosse apenas uma zona de livre comércio, cada governo teria de assumir plenamente a negociação e o custo político de suas decisões. Os diplomatas de países vizinhos como Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai tenderiam, naturalmente, a agir de forma articulada em defesa de interesses comuns. Mas teriam de trabalhar muito mais cuidadosamente para definir os objetivos partilhados e o alcance de sua cooperação, sem as obrigações decorrentes da participação numa união aduaneira. Mas o Mercosul mal chega a cumprir, de fato, as funções de uma zona de livre comércio. O intercâmbio na região continua emperrado por barreiras absurdas. Primeiro, há a incidência múltipla da TEC. Se um produto originário de fora do bloco circular por mais de um país, será tributado mais de uma vez. Há muito tempo se discute a eliminação desse imposto múltiplo e o problema não foi resolvido. Depois, há as barreiras internas, principalmente no comércio entre os dois maiores sócios. O governo argentino pretende, agora, aplicar salvaguardas - batizadas como Medidas de Adaptação Competitivas - a produtos de várias indústrias brasileiras, ampliando as barreiras em vigor. Pretende também elevar a TEC de vários produtos e o governo brasileiro dá sinais de concordar, menos de uma semana depois de haver assumido, no G-20, o compromisso de evitar novas medidas protecionistas por 12 meses. Nessas condições, é difícil imaginar a possibilidade até de um acordo mais limitado, como seria a adoção de normas de livre comércio entre União Européia e Mercosul. Se o padrão de comportamento dos governos do bloco se mantiver, os quatro sócios continuarão impedidos de celebrar acordos comerciais de grande alcance. Toda integração realizada no Mercosul até agora - e muito mais - seria viável numa zona de livre comércio. É hora de pensar seriamente nisso. *Rolf Kuntz é jornalista

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