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O milagre da multiplicação do leite

Por Fernando José R. Kachan
Atualização:

A Operação Ouro Branco da Polícia Federal tornou pública a prática de adulterar o leite pela adição de água oxigenada, soda caustica, soro de leite e outras substâncias que, combinadas, atuam como conservantes e promovem o milagre da multiplicação do leite. Há muito alguns segmentos da cadeia láctea discutiam, reservadamente, o problema da fraude no leite longa vida e se manifestavam preocupados com a eventual divulgação desse problema e o risco de se provocar grave crise no setor pela queda no consumo. Confiavam em que, para resolver a questão, bastaria que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento intensificasse as fiscalizações. Em algumas ocasiões houve ação do Ministério, que chegou a identificar leite fraudado em marcas analisadas, mas com tímida divulgação. O lobby da adição de soro ao leite sempre foi forte e atua não só no sentido de dificultar as fiscalizações, como também no de legalizar a adição de soro ao leite, criando uma verdadeira aberração tupiniquim, o "leite modificado". Há alguns anos, qualificado funcionário de um laticínio me enumerou os "esses" do leite longa vida. Recordo-me de alguns, como S de suborno, S de sorbato de potássio, S de soda e S de soro. As conseqüências desse descalabro se fazem sentir por toda a cadeia produtiva. A indústria, promovendo o milagre da multiplicação do leite, satisfaz sua avidez por lucros fáceis vendendo um líquido branco por leite a preços que não poderiam ser praticados se todo o conteúdo da caixa fosse, de fato, leite. O varejo, por sua vez, faz do leite de preços irrisórios chamariz para atrair o consumidor e exerce sobre a indústria enorme pressão para redução de preços. O governo prefere se omitir. Primeiro, pelo obsessivo combate à inflação, em que os fins justificam os meios. Alimento tem de ser barato. Não importa que isso signifique enorme passivo aos produtores ou produto de baixa qualidade. Segundo, porque é um dos maiores compradores do produto para distribuição à população de baixa renda. Dói no bolso do Estado o preço do leite justo. A situação do consumidor merece análise mais detalhada. A principal qualidade que o consumidor brasileiro preza no leite é o preço baixo. Isso ocorre porque o consumidor não está habituado a consumir o leite sem adição de café, achocolatados, açúcar e outras substâncias que mascaram seu sabor natural. Desde a tenra idade dos filhos, as mães, ao cessar o aleitamento materno e introduzir o leite na dieta das crianças, fazem-no sempre com adição dessas substâncias. Resultado disso é que as crianças crescem sem saber distinguir o verdadeiro leite pelo sabor. Para o consumidor, sendo líquido e branco é leite. Independentemente dessa condição, os consumidores brasileiros estão sendo lesados quando compram leite e recebem outras substâncias. Os produtores de leite sofrem sérios prejuízos com as fraudes. O milagre da multiplicação do leite promove o aviltamento dos preços que lhes são pagos, normalmente insuficientes para cobrir os custos de produção. Os preços baixos são sempre justificados pelo excesso de matéria-prima no mercado. O resultado disso é a dilapidação do seu patrimônio e a diminuição da capacidade de investimento, o que afeta a obtenção de produtos de qualidade superior. O leite longa vida caiu no gosto popular pelas facilidades que proporciona. Não é necessário, contudo, ser versado em ciências econômicas para constatar a impossibilidade de que 1 litro de leite longa vida custe por volta de R$ 1. Se apenas a caixinha, ou seja, o continente, custa aproximadamente R$ 0,40, significa que sobra R$ 0,60 para remunerar o leite que contém o transporte da fazenda ao laticínio, todos os custos industriais, as comissões de venda, o transporte até o varejo, os lucros da indústria e do varejista, os impostos, etc. A conta não fecha se não houver o milagre da multiplicação do leite. A sociedade brasileira precisa deixar o cinismo de lado e assumir que, definitivamente, não é possível ter leite com qualidade a preços módicos sem que se leve o produtor à falência. As sociedades evoluídas respeitam aqueles que produzem alimentos e reconhecem a sua importância para a segurança da nação. A sociedade brasileira os despreza e apenas se lembra que os produtores rurais existem quando o preço dos seus produtos sobe e os torna os "vilões da inflação". Tudo na vida tem seu preço. Qualidade do leite, também. *Fernando José Ribeiro Kachan, agrônomo, é um dos fundadores e presidente por dois mandatos da Associação dos Produtores de Leite do Noroeste Paulista (Láctea Noroeste)

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