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O olhar britânico

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Um traço marcante nas relações anglo-brasileiras, mesmo no auge da Pax Britannica, era o enorme hiato entre a importância econômica da Grã-Bretanha e sua influência intelectual, cultural e mesmo política. Mesmo quando o Brasil era muito mais relevante do ponto de vista econômico e financeiro para Londres, a sua imagem era nebulosa. Quando a decadência comercial britânica já ia avançada e começava o desgaste da preeminência financeira, as poucas marcas deixadas aqui e ali são exceções que confirmam a regra: J.P. Wileman, a eminência parda de Joaquim Murtinho durante o governo Campos Salles, ou Ernest Hambloch, cujo livro His Majesty the President of Brazil o levou a ser considerado ''''persona non grata'''' em 1937. No pós-2ª Guerra Mundial, com o acordo da dívida externa de 1943, a liquidação dos ativos britânicos com os saldos brasileiros em libras e o contínuo declínio comercial, a imagem do Brasil vista do Reino Unido minguou ainda mais. Quando cheguei pela primeira vez às ilhas, há quase 40 anos, ainda se acreditava na importância da revolução tecnológica britânica, representada emblematicamente pelo Concorde, e num Estado de bem-estar que distribuía gratuitamente leite in natura a crianças carentes. O Brasil tinha visibilidade próxima a zero, a despeito da recente visita da rainha no início da obra da Ponte Rio-Niterói e do Parry Report de 1965, que tentava reverter o declinante interesse pela América Latina na academia britânica. Além disso, nas ilhas, ocorria algo similar à visão deformada dos Estados Unidos quanto à América Latina, amplamente dominada pelos países de língua espanhola, algo que desde então se agravou. E que ia bem além do que poderia ser explicado por contrastes lingüísticos, importância de diásporas ou proximidade geográfica. Um dado novo extremamente significativo neste ambiente de melancólico desinteresse britânico pelo Brasil foi a criação, em 1997, do Centro de Estudos Brasileiros na Universidade de Oxford ''''dedicado a aumentar o conhecimento e a compreensão do Brasil (história, lingüística, literatura, desenvolvimento social, governo, política, economia e meio ambiente), do papel do Brasil no mundo e das perspectivas brasileiras quanto a temas globais''''. O centro teve contribuição muito destacada para tornar mais visíveis os debates sobre temas de interesse brasileiro. Seu desempenho pode ser comparado com vantagem ao de qualquer outra instituição acadêmica com interesse em temas brasileiros, inclusive nos Estados Unidos. Sua existência durante dois períodos de cinco anos foi viabilizada por financiamentos que envolveram parcerias com o governo brasileiro, empresas estatais brasileiras, empresas privadas no Brasil e no Reino Unido, organizações não-governamentais brasileiras, doações de pessoas físicas, apoio do Conselho de Financiamento da Educação Superior para a Inglaterra e da Universidade de Oxford. O centro foi iniciativa de Leslie Bethell, professor emérito da Universidade de Londres e Professorial Fellow de St. Antony''''s College, autor do clássico Abolition of the Brazilian Slave Trade e organizador da Cambridge History of Latin America. Bethell, que se tornou diretor do centro, além de acadêmico distinto, tem refinada capacidade crítica quanto a temas artísticos e culturais. A amplitude de seus interesses, aliada à memória longa quanto às relações anglo-brasileiras, assegurou a implementação de programas diversificados para as atividades do centro. Meu foco de interesse acadêmico nas ilhas passou a ser Oxford, embora tenha sido treinado na tradição cambridgeana de considerá-la ''''the other place'''' (o outro lugar). Lá estive várias vezes, mesmo antes da fundação do centro, e depois dedicado aos capítulos econômicos pós-1930 da Cambridge History of Latin America. Lamentavelmente, sabe-se agora que o centro está fechando as portas, provavelmente de forma definitiva, em vista da impossibilidade de obter garantia de financiamento no próximo qüinqüênio. É provável que a Universidade de Oxford tenha, em momentos decisivos, demonstrado entusiasmo apenas morno pela sua manutenção. É provável que tenha havido desconforto ou mesmo hostilidade de especialistas de Oxford em outros países latino-americanos quanto ao ''''caso especial'''' configurado por centro especializado em Brasil. O que é certo é que a principal razão para o seu fechamento é a mudança de atitude do governo brasileiro quanto ao apoio financeiro. Caracterizada a interrupção do apoio oficial brasileiro - inclusive de estatais -, ficou mais árduo tratar de funding com o setor privado. É difícil deixar de associar essa mudança de atitude à reorientação da política externa brasileira que ocorreu a partir de 2003, com a sua peculiar combinação de protagonismo, sectarismo e escassez de resultados. Poderá ter também cumprido papel relevante o travo de que o centro teve simpatia excessiva por Fernando Henrique Cardoso e pelo PSDB. Não é o que registra minha memória quando lembro dos diversos eventos em que lá participei. Perdeu-se importante instrumento para atrair a atenção para a análise de temas de interesse brasileiro em uma instituição de prestígio global. Uma pena. *Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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