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O osso duro da economia cartorial

Por Dionísio Dias Carneiro
Atualização:

O Brasil ignorou a crise do crédito? Nada mais positivo para um país que se organiza para crescer do que manter a autoconfiança quando os outros a perdem. Entretanto nada mais frágil do que a autoconfiança calcada em falsos argumentos. No quadro atual, não se pode ignorar a habilidade política com que o governo usa os instrumentos herdados de seu sucessor para construir um sistema de poder que nenhum partido brasileiro ousaria conceber, muito menos o PT ou o PSDB. Constrói-se um osso duro de roer com a mistura de impostos, cartorialismo e crença na infalibilidade da burocracia para suprir as falhas do mercado. Na atual conjuntura, merecem atenção os novos recordes do Ibovespa, em plena crise de crédito global; o orgulho de Lula com a baixa inflação, que considera obra sua; e a satisfação do governo com o andamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A alta das ações brasileiras reflete fatores reais importantes. Paradoxalmente, as boas perspectivas das empresas brasileiras resultam dos aspectos mais criticados do governo Lula: a continuidade do conservadorismo da política macroeconômica e a falta de ativismo cambial. Enquanto isso, empresas líquidas, que exportam, apesar de estarem menos protegidas dos desafios externos, e que lucram, mesmo a taxas de câmbio desfavoráveis, adotaram projetos de investimentos que resistem aos juros elevados e decidiram fazê-lo sem depender dos financiadores estatais. Resultado: ficaram atraentes para investidores de todo o mundo e Lula comemora. A contribuição do governo Lula para a baixa inflação, que alimenta a confiança que sustenta os investimentos de longo prazo, tem sido a independência do Copom. Porta-voz da insatisfação com a política antiinflacionária, o ministro da Fazenda fez gol contra quando ignorou o papel que uma meta oficial menor desempenharia para baixar os custos de manter a inflação em queda. A inflação continua a subir. Preocupante, também, é a satisfação demonstrada pela ministra que controla as ações do PAC. Desde o lançamento, ficou claro que a indigência da articulação econômica tornava o PAC algo menos do que um programa. Alguns investimentos já em andamento foram embalados para a vitrine. Aos empresários, as promessas de que o governo desentupiria, no segundo mandato, os canais que foram obstruídos no primeiro, por conta do enredamento do BNDES em limpezas ideológicas e lutas internas, das brigas entre os diferentes tuxauas do Meio Ambiente, das convoluções ideológicas do modelo energético e da inépcia corrupta que mistura infra-estrutura de transportes com tapa-buracos e leilão de verbas. O PAC já gerou frutos. Descobriu-se que a sigla tinha virtudes para a máquina de propaganda oficial. Os 50 grupos de trabalho pilotados por José Dirceu foram recosturados com a linguagem empresarial do foco nos resultados. Fala-se em PAC para a saúde, a educação, a segurança, os aeroportos e a seca. Empresários usam o espaço aberto para manter um canal de pleitos com o governo, o governo responde com um PAC e todos passam a acreditar que as relações entre Estado e mercado ficaram menos conflituosas. Em nível mais profundo, merece reflexão a intenção, confirmada nas entrevistas da ministra, de salvar o capitalismo a partir dos pilares do tradicional cartorialismo brasileiro, em versão pós-mensalão. Do ponto de vista das instituições econômicas, organiza-se uma economia cartorial de mercado, inspirada nas feitorias manoelinas, na clarividência do burocrata iluminado, no protecionismo patriótico e, sobretudo, na subordinação das empresas ao grupo que controla o Estado. Do ponto de vista político, a captação de recursos para o financiamento de campanhas, que resultou nos escândalos, converte-se em chamado para que empresários sirvam ao grupo político que tomou o poder e que descobriu o tesouro enterrado na máquina arrecadadora montada pelo governo anterior. Sobre essa herança bendita constrói-se a base de uma longa hegemonia política, que prescinde de partido único ou de reformas bolivarianas, mas não de distributivismo. Com ou sem PAC, a demanda se acelera, pressiona a capacidade produtiva existente e força os preços. O próprio ritmo da construção habitacional, que apenas se inicia, atrairá protetores da concorrência para em breve laçar engenheiros, gruas e sacos de cimento no pasto, e não encorajar a produção de insumos. Como disse Otto Lara Resende: ''''Paisinho duro de roer, o Brasil. Será que melhora quando ficar pronto?'''' *Dionísio Dias Carneiro, economista, professor do Iapuc, é diretor do Iepe/CdG

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