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O papel das selfies da vacina nas políticas públicas

Tradição mais longa do que se poderia esperar tem papel-chave quando há desconfiança na área da saúde e nos políticos

Por Vanessa Friedman
Atualização:

Um dia, quando a história da pandemia de covid-19 for escrita, o relato em parte será feito em imagens: o desespero dos hospitais lotados, os sacos mortuários, o temor e o isolamento das máscaras. E o lenitivo de um indivíduo sorrindo, a manga da camisa arregaçada praticamente até a clavícula com um enfermeiro pronto para lhe aplicar uma injeção no braço. Entre em qualquer plataforma social e a imagem, para não mencionar a pose – é quase impossível escapar.

As selfies de alguém tomando a vacina viralizaram.

Gravura da década de 1880 ilustra vacinação compulsória em New Jersey Foto: Natural Library of Medicine

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“Comecei a ver selfies de pessoas sendo vacinadas quase que no momento em que começou a vacinação”, disse David Broniatowski, professor de Engenharia e Ciências Aplicadas na Universidade George Washington. “Foi um meme quase imediato”.

E como disse a Dra. Jeanine D. Guidry, professora de Comunicação e Saúde Pública na Virginia Commonwealth University, “isso pode acabar se tornando uma das imagens icônicas desta época”.

E, o que talvez não seja uma surpresa, a moda desencadeou uma outra tendência, subproduto daquela: a selfie de alguém se vacinando fazendo topless, principalmente, inspirado por políticos europeus, mas também por uma celebridade ou outra. Vimos selfies de peito desnudo compartilhados pelo ministro da saúde da França, Olivier Véran, e do primeiro-ministro grego Kyriakos Mitsotakis. Também o estilista Marc Jacobs posou usando um short rosa cintilante com a camisa rosa deixando seu dorso totalmente à mostra, e por cima uma capa com estampa de leopardo e algumas pérolas. “Este é um look, e é um momento, que vale a pena comemorar”, a Vogue gracejou debochadamente.

Primeiro-ministro da Grécia, Kyriakos Mitsotakis, recebendo a segunda dose da vacina contra coronavírus Foto: Yannis Kolesidis/Reuters

Talvez o fato explique isso: muitos de nós estamos escondidos há tanto tempo, nos sentindo tão aterrorizados e impotentes que o ato de tirar a roupa tem um aspecto libertador. Ou a necessidade de fazer alguma coisa que chame atenção numa época de caos da mídia social. Se todo o mundo está fazendo selfies, como você vai sinalizar que a sua é importante?

Este é um fenômeno muito antigo. Antes das selfies de vacina em topless, havia a foto. E antes dela, a gravura.

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Bom, há muito tempo, desde que começaram as inoculações, existe uma certa intranquilidade com a ideia (injetar numa pessoa saudável um pouco da doença para deixá-la melhor é algo difícil de vender). E isso requer esforços conscientes das autoridades de saúde pública para promover a vacinação, o que tem envolvido, com frequência, a “pose” para fotos. “Imagens são muito poderosas”, afirmou Mark Dredze, professor de Ciência da Computação na John Hopkins University.

Por exemplo, existem múltiplas gravuras, do século 18, de Edward Jenner, pioneiro da vacina contra a varíola, inoculando seus filhos e pacientes. Uma das mais famosas fotos é uma de 1956 de Elvis Presley, então com 21 anos, um ídolo dos adolescentes, com seu suéter levantado para tomar sua vacina contra a poliomielite. E em 2009 o presidente Barack Obama foi fotografado na Casa Branca ao lado de uma enfermeira preparando a seringa para lhe aplicar a vacina contra a gripe H1N1. Em todos os casos a teoria por trás das imagens era a mesma.

“Nas comunicações de saúde pública em geral é considerada boa prática ter imagens de líderes conceituados sendo vacinados”, disse Broniatowski. E o raciocínio continua: quando você vê uma autoridade eleita disposta a ser cobaia, a imagem entra no seu subconsciente e de repente você começa a pensar que deve também se vacinar.

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E assim foi, até a atual pandemia. O fato é que, entre Obama e hoje, duas coisas aconteceram. Em primeiro lugar, a mídia social realmente decolou (é difícil lembrar, mas o iPhone foi lançado em 2007, mesmo ano que o Facebook e o Twitter se tornaram plataformas globais. O Instagram só surgiu em 2010). Em segundo lugar, como disse Jeanine, “observamos perda de confiança em algumas áreas da ciência e nos nossos políticos”.

Na ofensiva para alcançarmos uma imunidade de rebanho o selfie da vacina tem um papel-chave. Não é mais simplesmente uma expressão de vaidade ou falsa modéstia, e tem transformado o público, consciente ou não, em proselitista da saúde pública.

Israelense tira selfie ao ser vacinado ontra a covid em Jerusalém Foto: Ammar Awad/Reuters

Embora seja possível que todas essas fotos provoquem algum ressentimento (nem todas as pessoas que desejam ser vacinadas o conseguem no momento) e esses políticos sem camisa tenham chamado muita atenção para sua inoculação (e sua foto), a onda de selfies em si representa um momento crucial.

Que todos conseguem ver. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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