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Ex-presidente do BC e sócio da Rio Bravo Investimentos

Opinião|O teorema da narrativa

A cretinice é um direto assegurado, mas desde que não fira o vizinho

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Atualização:

Há muitas maneiras de contar a história da ascensão de líderes populistas dessa variedade nova iniciada por Donald Trump, e que se alastrou por diferentes continentes. Narrativas e redes sociais sempre fazem parte das explicações.

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Mas, mesmo antes de Trump, a palavra “narrativa” vinha ganhando estranha popularidade, quase sempre para expressar uma velha máxima do jornalismo político: a versão importa mais que o fato. Entretanto, essa simples ideia de aspecto inocente se transformou em um fenômeno nefasto na Era Trump: a “pós-verdade” foi a palavra do ano para o Dicionário Oxford em 2016.

Mas porque exatamente esse conceito contagiou tanta gente e tão profundamente?

A explicação tem a ver com um tema antigo e intrigante, a popularidade da pseudociência.

Por que as pessoas acreditam em astrologia, homeopatia, terraplanismo, vida emocional das plantas, abdução por alienígenas, entre tantos temas que os cientistas se recusam a levar a sério?

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Três respostas:  (i)  são coisas para as quais é difícil ou inútil organizar uma refutação (ou uma prova) simples e conclusiva, e facílimo de montar uma conspiração;  (ii) são credos inofensivos; e  (iii) que apelam às ansiedades e emoções das pessoas, frequentemente lhes dando uma sensação de inserção em um grupo de iniciados portadores da verdade.

Agora, vamos ao enunciado de um teorema: quando uma narrativa sem pé nem cabeça é afirmada pela liderança política, e atende a essas três condições (todas as três, não apenas uma ou duas), diz-se que se constituiu a chamada “pós-verdade”.

Segue-se que o indivíduo testará positivo quanto à doença de pós-verdade quando for pilhado apoiando ou propagando a ideia pela qual não existe a ciência, apenas a narrativa, sendo que vai valer a que tiver mais clicadas. É fácil ver que a pós-verdade foi fundamental para a construção política e sucesso eleitoral de líderes desse populismo do século 21, pela direita e pela esquerda.

Não se imaginava que a pandemia pudesse ser um choque muito fundamental para esse modus operandi, mas é o que temos, uma vez que, na pandemia, as condições essenciais para o curso tranquilo da pós-verdade não mais se verificam. É tolo, além de ser irresponsável, tratar uma emergência médica como se a doença fosse “narrativa”. Não se pode tratar a covid-19 chamando o especialista em marketing digital.

O teorema das narrativas deixa de ter validade porque 2 de suas 3 premissas deixam de valer: (i) as comprovações são possíveis, ou seja, é simples organizar uma refutação simples e conclusiva das virtudes milagrosas da cloroquina, por exemplo, como das insanidades que se espalham sobre vacinas; mas, fundamentalmente, porque (ii) o negacionismo deixou de ser um credo inofensivo, uma mera diferença de opinião, sem consequência, a estupidez mata.

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Continua sendo verdadeiro que é fácil inventar uma conspiração e que a crença na liderança apela às ansiedades e emoções das pessoas e lhes dá uma sensação de pertencimento a um grupo de iniciados. A guerra cultural determina em que metade do estádio você vai sentar, no meio da torcida, docemente constrangido a não discrepar do que se passa à sua volta. Assim é a vida em sociedade, ainda mais com redes sociais funcionando como torcidas organizadas.

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Por isso, ainda existem tantos americanos que acreditam que a eleição foi “armada” e brasileiros que acreditam nas loucuras que chegam pela internet sobre vacinas.

A mitologia populista se vê destruída quando as comprovações são possíveis e quando a “narrativa alternativa” deixa de ser um credo inofensivo. A cretinice é um direto constitucionalmente assegurado (salve Nelson Rodrigues), mas desde que não fira o vizinho. Quando o faz, há um outro elemento que agrava sobremodo a situação de líderes que exageraram em “narrativas alternativas”: a responsabilização.

Se a liderança sustentou um credo comprovadamente falso e que causou danos às pessoas: como não haver responsabilização pelo ocorrido? *EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS

Opinião por Gustavo H.B. Franco
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