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Obsessão autárquica

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Em meio à cacofonia e às piruetas que têm marcado o debate econômico recente não faltou quem propusesse que o governo Rousseff acompanhasse o seu arrependimento em relação à política macroeconômica, e o aparente repúdio da "nova matriz macroeconômica", com uma abrupta reversão da política comercial que levasse a radical abertura da economia. Houve até quem propusesse retomar as ideias de integração hemisférica abandonadas com a Alca nos idos de 2005. Tais propostas são utópicas. Abrir a economia é imperativo, mas requer governo competente e situação econômica menos crítica. E será que, a esta altura, Washington tem algum interesse no tema? Há diferença entre querer e poder. Num quadro de recessão econômica, será que o governo estaria disposto a enfrentar perdas adicionais de emprego que certamente adviriam no curto prazo da abertura da economia? Abrir a economia é algo ao arrepio das crenças do PT. E também contraria a tradição autárquica que marca a história econômica do País. A economia brasileira é escandalosamente fechada. A participação das exportações brasileiras nas exportações mundiais está hoje em torno de 1,2%, enquanto o País responde por 3% do PIB mundial. É bem menor do que os 2,2% do início da década de 1950 e de todo o período desde a independência até o fim dos anos 50. A participação do Brasil no estoque de investimentos externos também caiu espetacularmente entre 1930 e o final do século passado. A recuperação dos investimentos diretos que ocorreu após a virada deste século se deve ao fim da hiperinflação nos anos 90, à retomada de investimentos estrangeiros na provisão de serviços públicos e ao efeito perverso do investimento estrangeiro tirando proveito da alta proteção do mercado doméstico. A tarifa de importação é outra indicação do entusiasmo autárquico. Ela foi tradicionalmente muito alta desde meados do século 19, o que fez sentido quando o Brasil, grande produtor de café, conseguia transferir parte de seus custos de produção inflados pela proteção aos preços mundiais de café. Por longos anos, a partir de 1930, a política econômica baseou-se em câmbio sobrevalorizado, controle de importações e tarifa alta. O protecionismo consolidou-se com as multinacionais jogando papel crucial na sua defesa, especialmente no setor automotivo, em "santa aliança" com lideranças sindicais no setor metal-mecânico. Meio século de milagre até 1980 foi sucedido por um quarto de século de estagnação, até 2005. A substituição de importações, combinada à expansão das exportações industriais baseada em fartos subsídios, funcionou até os anos 70, mas depois se esgotou. A abertura comercial do início dos anos 90 foi viabilizada pela insatisfação com o desempenho da economia sob a estratégia que combinava autarquia, estatização e hiperinflação. Foi facilitada pela liberalização na Argentina e pela negociação do Mercosul. Depois de 1995 houve modesta erosão da abertura, mas nada espetacular. A reversão tornou-se expressiva a partir do segundo mandato de Lula e no governo Rousseff, com as regras de conteúdo nacional e a tributação interna discriminatória de importações. Com o fracasso da Rodada Doha, a política comercial foi dominada pelo saudosismo protecionista, enquanto a diplomacia econômica brasileira entrava em crise aguda. Por diversas razões, a reversão da obsessão autárquica enraizada na história é improvável, mesmo em prazo mais longo. Talvez possa haver uma reorientação da tradicional postura autárquica com a eventual alternância de poder na esfera federal. Mas não deve ser esquecido que setores influentes da atual oposição defenderam no passado posturas tão protecionistas quanto as adotadas pelo governo Rousseff. Para que o Brasil abandone a sua crença nas virtudes da autarquia, vai ser preciso mobilizar amplo leque de setores da sociedade que são prejudicados pelo fechamento da economia. *Marcelo de Paiva Abreu é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge e professor titular no departamento de Economia da PUC-Rio 

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