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''Pacote dos EUA é um choque gigante''

Para o professor, uma das maiores armadilhas a ser superada é a reestruturação do sistema financeiro americano

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Por Fernando Dantas
Atualização:

Apenas a 2ª Guerra Mundial, com gastos em valores atualizados de US$ 3,6 trilhões pelos Estados Unidos, superou o pacote de estímulo fiscal de até US$ 850 bilhões com o qual o presidente eleito, Barack Obama, pretende relançar a economia americana já a partir dos primeiros dias do seu mandato. O levantamento é do jornal Washington Post, que mostra como expansões de despesas que marcaram época na história americana, como o programa espacial, a construção do sistema interestadual de rodovias ou as guerras do Iraque e do Vietnã, tiveram custo inferior ao megapacote a ser desembrulhado em janeiro de 2009. Mas, para Kenneth Rogoff, professor de Harvard, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e uma das vozes mais respeitadas no debate econômico nos Estados Unidos, não é certo que o estímulo fiscal, uma "grande caixa-preta", na sua avaliação, vá funcionar. Ele compara o programa a uma aplicação de desfibrilador cardíaco, um imenso choque na atividade econômica moribunda para trazê-la de volta à vida. A situação está tão ruim que Rogoff acha que a estratégia é válida, e tem esperança de que dê certo. As armadilhas no caminho, porém, são enormes. A principal é forçar a reestruturação do sistema financeiro, contrariando o poderosíssimo lobby de acionistas, credores e executivos do setor, que têm muito a perder no processo. Sem o simultâneo saneamento dos bancos, para Rogoff o impulso será passageiro e os Estados Unidos poderão repetir a trajetória do Japão a partir do fim dos anos 80 - estouro de bolha especulativa seguido de estagnação que persiste até hoje. Outro problema é impedir que o pacote se transforme num gigantesco penduricalho de programas fisiológicos e de desperdício. Rogoff, que vê os governos subnacionais e o setor de infra-estrutura nos Estados Unidos entranhados de práticas corruptas, acha que o mau uso dos recursos não tem como ser evitado. A tarefa do governo Obama não é impedir, mas mitigar o desperdício. Sem papas na língua, o economista, que considera otimista sua previsão de queda do PIB americano entre 2% e 2,5% em 2009, atacou também o governo Bush e o resgate da indústria automobilística. Como o sr. vê o megapacote de estímulo fiscal de Obama? O resultado é totalmente imprevisível. É uma grande caixa-preta, mas a situação está tão perigosa que vale a pena tentar. Para mim, é como uma aplicação de desfibrilador, um choque gigante. Pode não dar certo? Certamente, há uma chance de que não funcione. Alguns economistas questionam se não deveríamos simplesmente deixar a recessão acontecer. Acho que essa idéia era certa há um ano, mas foram cometidos tantos erros ao longo do caminho que a situação se tornou mais perigosa do que deveria. O governo Bush errou enormemente a mão nessa crise. Eu, pessoalmente, acho que a desfibrilação vai funcionar e tenho esperança que também funcione a reestruturação financeira, que é crucial. Por quê? Porque o principal objetivo é sanear o sistema bancário e financeiro. O pacote fiscal tem a função de acolchoar a queda no preço dos ativos, de acolchoar o colapso no consumo e no investimento, e isso, em teoria, torna mais fácil sanear os balanços, pois os ativos não cairão tanto em valor. Mas o pacote não é para estimular diretamente a economia? Isto tudo funciona junto. À medida que a economia é estimulada, o balanço dos bancos torna-se mais forte. À medida que o balanço dos bancos torna-se mais forte, fica mais fácil relançar o sistema bancário e isso também estimula a economia. Estamos num círculo vicioso, no qual o colapso do sistema financeiro alimenta a queda no setor real e vice-versa. A idéia é a de tentar reverter o ciclo. Não é apenas o efeito direto. Esse é temporário. Como assim? Se houver apenas o estímulo fiscal, e não muito para consertar o sistema financeiro, haverá um impulso temporário, o crédito não vai aumentar. O produto será artificialmente aumentado, mas os Estados Unidos vão terminar com muito mais dívida e muito pouco para mostrar em troca disso. Se reestruturarem o sistema financeiro, ajuda a dar um tranco na economia e o crédito volta a fluir. É preciso colocar dinheiro para calçar o setor residencial, e provavelmente eles terão de intervir diretamente nos mercados de crédito por um período prolongado, porque simplesmente não estão funcionando. Como seria esta intervenção? Basicamente, seria o Tesouro assumir o que o Federal Reserve (BC dos EUA) já veio fazendo: comprar no atacado vários tipos de empréstimo. O governo americano não está numa posição de fazer empréstimos individuais, mas pode comprar carteiras de empréstimos, atuar como operador de atacado temporariamente através do sistema bancário. O sr. acha que os sinais e passos iniciais do governo Obama vão na direção que o sr. defende? Ainda precisamos ver o que eles farão com o sistema financeiro. Se não houver um grande progresso aí, os Estados Unidos vão para o mesmo caminho do Japão, que gastou muito dinheiro em estímulo fiscal, mas fez pouco para reestruturar o sistema financeiro. Até agora, apesar da conversa sobre evitar a experiência japonesa, a cada dia nos parecemos mais com o Japão. Por que a reestruturação do setor financeiro é tão difícil de fazer? Há duas razões. A primeira é que é muito complicado e o governo vai ser muito criticado, não importa o que faça. Em segundo lugar, o lobby do sistema financeiro é extremamente poderoso. Há muita gente fazendo lobby para que o status quo seja mantido, e é muito difícil se livrar desses lobbies. Eles foram o lobby mais poderoso em Washington nos últimos 15 anos. Com os fatos recentes, deles perderam poder, mas ainda estão muito vivos. Mas a reestruturação não seria favorável ao setor? Não. Os acionistas vão perder tudo, os detentores de bônus vão perder dinheiro, várias centenas de altos executivos provavelmente perderão seus empregos. Os contribuintes americanos não devem pagar todo o custo de recapitalizar o sistema financeiro. Os credores também deveriam pagar parte dele. O Citibank não tem como sair dessa sem capitalizações adicionais, não está conseguindo fazer dinheiro. Isso é verdade em relação a todos os grandes bancos. Não adianta contemporizar, eles simplesmente não estão fazendo dinheiro. É muito complicado, mas eles precisam entrar em algum tipo de concordata - mas é claro que o governo tem de liquidar mutuamente as posições entre os bancos, como não foi feito no caso do (banco de investimentos) Lehman (Brothers). Uma parte da reestruturação é fazer com que os credores assumam parte do custo, que é o que ocorre numa concordata, o débito se torna, em parte, participação acionária. Como o sr. viu o pacote de socorro para a indústria automobilística? Isto realmente é política. Sou simpático à idéia de que, quando o governo assina cheques a torto e a direito para o sistema financeiro, é difícil dizer não para as montadoras. Mas o dinheiro é basicamente um presente para os acionistas das montadoras, e não acho que vá salvar muitos empregos. As empresas deveriam ter sido levadas à concordata. É um completo desperdício de dinheiro. Não acho que os Estados Unidos estarão fabricando carros daqui a 15 anos, da mesma forma como já não fazemos televisões. É uma indústria moribunda. Os recursos do impulso fiscal poderão ser mal empregados? Isso vai acontecer. O governo Obama tem de arrumar uma maneira de mitigar esse problema, mas isso é um trabalho difícil quando se gasta dinheiro nestas proporções. Uma parte grande do dinheiro vai para os governos estaduais e municipais, e nós já estamos vendo em Chicago o que pode acontecer, com episódios como o do (Rod) Blagojevich (governador de Illinois, acusado na Justiça de tentar vender uma vaga de senador): ele deve estar tão aborrecido em deixar o seu cargo logo agora que ia receber dinheiro como nunca. Há muito risco de corrupção? Se você visse o que aconteceu em Boston com o chamado projeto Big Dig (que colocou importantes vias da cidade em túneis subterrâneos): foram US$ 20 bilhões, e provavelmente deveria ter custado US$ 3 bilhões. Foi inteiramente corrompido, incompetente - os sindicatos, os políticos, a polícia, as empreiteiras. Você poderia fazer todo mundo voar de helicóptero em Boston com o dinheiro que eles gastaram. Mas vamos esperar. Parte do desafio de Obama é fazer mudanças, para que consigamos arrancar algum valor de toda esta gastança. Qual a sua projeção para o crescimento dos Estados Unidos no próximo ano? Acho que vai ser negativo em 2% ou 2,5%. Me considero otimista, e prevejo que, ao final de 2009, o crescimento terá se recuperado para zero. Vamos entrar numa década de crescimento muito baixo, ou pelo menos de cinco a sete anos. A produtividade deve crescer 1% ao ano, o que, com mais 1% de crescimento populacional, dá 2%. Isso já seria um resultado muito bom. E o emprego? A promessa de Obama de criar 3 milhões de postos de trabalho com o pacote é crível? Acho que muitos postos serão ocupação quebra-galho e a taxa de desemprego vai parecer artificialmente menor, porque as pessoas estarão nesses empregos. Mas a taxa efetiva vai atingir de 9% a 10% ao menos, ao final de 2010. Minha expectativa é de que cresça continuamente por dois anos. Como o sr. vê o Brasil? Sou mais pessimista que o consenso em relação ao crescimento do Brasil em 2009, mas sou muito otimista no longo prazo. O Brasil vai agüentar esta crise melhor do que os Estados Unidos. Os mercados de crédito vão permanecer abalados, o preço das commodities vai ficar baixo. Os mercados emergentes vão continuar a desacelerar em 2009, mas a recuperação deles será bem mais na forma de V (forte queda seguida de forte retomada), comparando com os países desenvolvidos.

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