
03 de junho de 2020 | 05h00
BRASÍLIA - O aumento dramático nos gastos públicos para combater efeitos da crise provocada pela pandemia do novo coronavírus acendeu o debate entre economistas sobre como o Brasil vai sinalizar a investidores um compromisso crível com a reorganização das contas públicas. Um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o economista José Roberto Afonso defende que o País adote uma meta de dívida pública, associada a um limite mais flexível para as despesas.
O atual teto de gastos, que limita o avanço das despesas à inflação, deve enfrentar uma pressão cada vez maior e pode estourar já no ano que vem sem a aprovação de reformas que ataquem o gasto público.
Enquanto isso, parlamentares do Centrão, bloco que se aliou a Jair Bolsonaro para dar sustentação ao governo, e até integrantes da ala política do governo defendem mais despesas públicas para impulsionar a retomada da economia pós-pandemia. Há também pressão para que o governo crie uma renda básica para a população vulnerável com base no auxílio emergencial de R$ 600 criado temporariamente para o período da crise, política que poderia ter custo bilionário.
A equipe econômica tem defendido fervorosamente a manutenção do limite nos moldes atuais e vê na regra uma “superâncora” para sair da crise com a confiança dos investidores de que o País seguirá fazendo o ajuste fiscal. A avaliação no governo é que qualquer alteração no teto pode se transformar em custo adicional para o País se financiar no mercado, com reversão da trajetória de queda nos juros da dívida.
Essa manutenção é vista como ainda mais crucial agora em que o Brasil precisou elevar brutalmente seu endividamento para reagir à pandemia. A previsão oficial é que a dívida bruta termine o ano em 93,5% do PIB, mas economistas já veem níveis até maiores, próximos de 100% do Produto Interno Bruto (PIB), um patamar considerado elevado para países emergentes como o Brasil.
Afonso, porém, vê na crise uma oportunidade para criar a trava para a dívida, ainda que sua aplicação fique suspensa em períodos de calamidade e recessão. “É importante dar um norte para os investidores que estão correndo para dívida pública na hora da tormenta, mas, quando esta se dissipar, precisam do conforto de que a mesma será paga”, afirma o economista, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
A LRF prevê os limites da dívida mobiliária (contraída via emissão de títulos públicos) e da dívida consolidada (que inclui os títulos e outros débitos, como empréstimos contratuais e precatórios judiciais), mas os dispositivos nunca foram regulamentados. Para Afonso, a hora de fazer isso é agora, no meio da crise, com possibilidade de prever uma longa trajetória de ajuste e associar a nova âncora a um “renovado teto”, mais flexível que o atual.
A meta de dívida poderia ser trianual, com atualizações periódicas, como já é feito com a meta de resultado primário (obtida pela diferença entre arrecadação e gastos) na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). “A ideia de uma meta rígida de gastos ou de dívida é irreal porque, infelizmente, a economia insiste em se mover em ciclos. Pior: às vezes, como agora, afunda sem parar”, Afonso.
No longo prazo, o governo continuaria com o compromisso de adotar medidas que resultem na convergência da dívida para a meta fixada, mas no curto prazo teria maior flexibilidade para agir em momentos de necessidade como o atual.
Para o economista Alexandre Manoel, ex-secretário de Acompanhamento Fiscal e de Avaliação de Política Pública do Ministério da Economia, que apoia a visão de Afonso, estabelecer uma meta de dívida e flexibilizar a regra do teto para acomodar algum aumento real nas despesas traz como benefícios o compromisso com uma meta crível e o alinhamento com a sustentabilidade fiscal. Ele defende que isso seja feito amparado em um plano de privatizações, em que as receitas obtidas ajudariam a reduzir o endividamento.
Segundo Manoel, os ganhos da implementação do teto em 2016, quando os investidores duvidavam da capacidade do governo em fazer o ajuste fiscal, são “incontáveis”. Mesmo assim, ele argumenta que é preciso ajustar a regra. “O novo cenário econômico e sanitário impõe uma renovação desse tipo”, afirma.
A visão não é unânime. Para o economista Gabriel Leal de Barros, do BTG Pactual, o teto de gastos é essencial para manter a confiança dos investidores no ajuste fiscal brasileiro. “A meta de dívida é uma meta secundária. Se o País não controlar os gastos, vai acumular uma dívida continuamente maior”, afirma. Segundo ele, o Brasil ainda tem espaço para cortar gastos e manter o teto sustentável.
No ano passado, o senador José Serra (PSDB-SP) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) fiscal que propõe retirar as despesas com Previdência do teto de gastos, desde que seja fixado um limite para a dívida pública da União. A PEC foi protocolada dias antes de o ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentar um conjunto de reformas fiscais, cuja tramitação está paralisada no Senado Federal devido à pandemia.
O consultor Leonardo Ribeiro, assessor econômico do senador, cita um estudo produzido por um conselho alemão de especialistas que apontou maior efetividade de regras que limitam a dívida. “O teto no Brasil tem um grande problema, que é a Previdência. Mesmo com reforma, a dinâmica de crescimento dessa despesa é acima da inflação. Isso achata outras despesas”, diz.
Segundo ele, o governo poderia criar uma meta de dívida a ser perseguida ao longo de 10 ou 15 anos, com acompanhamento anual sobre as medidas adotadas para atingi-la. No contexto atual, diz o consultor, o País poderia fixar uma meta de dívida próxima do patamar anterior à crise do novo coronavírus, ao redor de 80% do PIB.
A equipe econômica, contrária a mudanças, argumenta que o teto já tem válvulas de escape para episódios de crise, como os créditos extraordinários, que abrem caminho a despesas emergenciais sem necessidade de respeitar o limite de gastos.
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03 de junho de 2020 | 05h00
BRASÍLIA - Sem fazer novas reformas para controlar o ritmo de avanço das despesas públicas, o teto de gastos pode estourar já em 2021, prevê o economista Gabriel Leal de Barros, do BTG Pactual. Além do aumento nas despesas, a forte desaceleração da inflação na esteira do menor consumo das famílias acaba jogando contra a equipe econômica, ao reduzir o porcentual de correção do limite de gastos para o ano que vem.
O teto é o mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. No envio da proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021, há um mês, a equipe econômica estimava que a correção do teto seria de 3,23%, equivalente a um espaço adicional de R$ 47 bilhões. Agora, a pasta prevê que a variação será menor, de 2,08%, o que resultaria numa ampliação do teto em R$ 30,3 bilhões para o ano que vem.
Mantida a dinâmica atual, Barros calcula que o governo já tem contratada uma diferença de R$ 5,3 bilhões no limite para 2021, sem contar despesa adicional de R$ 10 bilhões, caso o Senado mantenha posição da Câmara e aprove a prorrogação da desoneração da folha de salários para 17 setores. O tema pode ser votado na Casa nesta semana.
O valor cresce exponencialmente nos anos seguintes, chegando a um estouro de R$ 142 bilhões em 2026, ano em que a regra pode ser revista.
Como mostrou o Estadão/Broadcast, o próprio Ministério da Economia admite uma redução de R$ 16,7 bilhões no limite de 2021 em relação ao previsto inicialmente devido à inflação menor. Economistas de mercado, porém, acreditam que a restrição pode ser ainda mais intensa.
Gastos obrigatórios com Previdência e salários de servidores, por sua vez, têm historicamente crescido em ritmo acima da inflação, o que exige da área econômica cortes em outras áreas para assegurar o cumprimento do teto – hoje, a principal âncora fiscal do governo, diante da dificuldade em fazer previsões para a arrecadação.
Para evitar um estouro do teto, que poderia acionar gatilhos que vedam determinadas despesas do governo e gerar desconfiança de investidores sobre a sustentabilidade fiscal do País, o ideal para o economista é o governo tentar acelerar a agenda de reformas estruturais, paralisada pela pandemia.
Entre essas medidas, estão a PEC Emergencial, que autoriza a redução de jornada e salário de servidores em até 25%; a reforma administrativa (prevendo revisão na forma de contratação de funcionários no setor público); a revisão do abono salarial e a melhoria do processo de compras públicas.
Já estava difícil cumprir o teto, mas agora pode ser mais desafiador”, diz Barros, citando movimentos do Congresso para tentar lançar medidas que podem impulsionar a economia no pós-crise, mas que também têm potencial de pressionar ainda mais o teto. “Isso mostra que a gente tem que atacar a despesa obrigatória para ontem”, afirma o economista, que é ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado.
Segundo ele, o governo só tem chances de cumprir o teto de gastos nos próximos anos se fizer uma reforma administrativa. Em seus cálculos, essa medida pode poupar entre R$ 105 bilhões e R$ 125 bilhões aos cofres da União nos próximos dez anos. A PEC Emergencial também tem impacto significativo e pode economizar cerca de R$ 22 bilhões ao ano, caso sejam acionadas todas as medidas previstas na proposta.
Barros reconhece, porém, que o governo se depara com uma espécie de “escolha de Sofia” entre as reformas tributária e administrativa, pois dificilmente as duas andarão juntas no Congresso Nacional. A equipe econômica ainda não encaminhou nenhuma das duas ao Legislativo, mas os parlamentares apresentaram suas próprias versões da reforma tributária e discutem um texto de consenso numa comissão mista.
A reforma tributária também ganhou apelo nas últimas semanas como iniciativa para simplificar o dia a dia de empresas após a pandemia e como possível palco para o ministro da Economia, Paulo Guedes, emplacar a criação de uma contribuição sobre transações. O novo tributo abriria caminho à tão desejada desoneração da folha de salários, que está nos planos da equipe econômica como maneira de incentivar empresas a retomar contratações no pós-crise.
“A janela de oportunidade é muito curta. No ano que vem, a dinâmica política vai ser muito incerta”, afirma o economista do BTG.
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