Sem uma ampla reforma tributária, que reorganize e unifique a cobrança de impostos em todo o País, o Brasil jamais conseguirá escapar da sina de crescer a taxas contidas. Esta é a avaliação do economista Maílson da Nóbrega, que enxerga a atual dinâmica do ICMS nos Estados como uma "insanidade".
Ex-ministro da Fazenda no governo de José Sarney e sócio da Tendências Consultoria Integrada, Maílson afirma que a reforma tributária é a mais importante para elevar a produtividade na economia. No entanto, ele vê o governo do presidente Michel Temer com "zero" espaço para tocar as mudanças. "A reforma tributária exige capital político e preparação do projeto, além de uma boa campanha de marketing e de convencimento dos governadores", diz Maílson. "Isso pressupõe um presidente eleito diretamente, com legitimidade e liderança."
Ao mesmo tempo, Maílson enxerga na Taxa de Longo Prazo (TLP), proposta pelo governo Temer como substituta da TJLP nos contratos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o início de uma revolução no crédito. Isso porque, com ela, será possível reduzir a taxa de juros estrutural do País - aquela em que há crescimento sem inflação.
Abaixo, os principais trechos da entrevista:
Broadcast: Sem as reformas econômicas, vai ser difícil manter o ritmo de crescimento de 2% ou 3% do PIB depois de 2018? Maílson da Nóbrega: Sim, porque o motor deste crescimento mais recente é a ocupação da capacidade ociosa. Com esta capacidade sendo ocupada até os níveis tradicionais, o ímpeto arrefece. O crescimento vai depender, a rigor, não apenas de um novo ciclo de investimento, mas da recuperação da produtividade. O ritmo de produtividade da economia brasileira como um todo caiu ao longo do governo do PT - já vinha caindo em alguns segmentos há algum tempo -, e praticamente só o agronegócio hoje exibe um nível satisfatório de produtividade. E como todos sabem, a produtividade é o principal fator para crescimento da economia e geração de renda. No Brasil, a perda de produtividade nos colocou em trajetória de baixo crescimento. O PIB potencial do País hoje deve andar por volta de 2,5%, se muito. Portanto, é preciso aprovar as reformas - e, neste caso, a mais importante é a tributária.
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Broadcast: Mais importante que a reforma da Previdência? Maílson: Para efeito de produtividade, sim. A reforma da Previdência é prioritária porque, sem ela, o País caminhará para a insolvência fiscal. Com isso, entraríamos num quadro de dominância fiscal, em que o Banco Central perde a capacidade de assegurar a estabilidade da moeda. A tributária, por sua vez, é uma reforma microeconômica fundamental para aumentar a eficiência. Hoje, o sistema tributário é o principal inibidor da expansão da economia brasileira. Além disso, nós precisamos de uma reforma tributária digna deste nome. Não é a reforma que o governo está falando.
Broadcast: O problema é que a briga por reforma tributária no Congresso é complicadíssima. Maílson: É complicado porque a reforma tributária implicará uma verdadeira revolução. Precisamos repetir, com esta reforma, o que foi feito em 1965 no governo Castelo Branco, quando se jogou fora o sistema de tributação do consumo, que era obsoleto e ineficiente, e se construiu um novo sistema. O Brasil tinha um sistema tributário cujas bases eram fundamentalmente jurídico-formais, numa herança do nosso bacharelismo e da nossa ascendência ibérica, e passou para um sistema baseado em fundamentos econômicos. Este novo sistema foi grande responsável pelo surto de crescimento econômico do Brasil a partir de 1968. Então, é isso o que precisamos fazer hoje: jogar fora o ICMS, o ISS, o Simples, o PIS, a Cofins, e construir um sistema no padrão que é seguido por mais de 150 países.
Broadcast: O que o senhor defende é a adoção do Imposto sobre Valor Agregado (IVA)? Maílson: É o IVA, com distribuição automática entre Estados e municípios. Essa história de que a descentralização nesta área (tributação por Estados) é a melhor opção é a de quem não acompanhou o que acontece no mundo nas últimas três décadas. São ideias de pessoas que pensam com a cabeça dos anos 1980. O mundo mudou, o modelo de organização mudou, e o país que não tiver um sistema de organização compatível estará fora do jogo. No mundo inteiro, somente dois países tinham tributação de valor agregado nos Estados: o Brasil e a Índia. Só que a Índia está abandonando este sistema, com a aprovação, este ano, de uma reforma tributária que criou o IVA do padrão mundial. Então, o Brasil vai ser o único patinho feio.
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Broadcast: É possível manter o ICMS? Maílson: Não dá para salvar o ICMS. Ele é o caos do ponto de vista da arrecadação, da eficiência, da produtividade e da competitividade do País.
Broadcast: A alíquota do IVA deve ser única para todo o País? Maílson: O mesmo produto tem que ser tributado no Brasil inteiro com a mesma alíquota. Você pode até ter mais de uma alíquota, mas não uma alíquota diferente para um mesmo produto, como a gente tem hoje. Com isso, você elimina a guerra fiscal entre os Estados e a bagunça tributária. Hoje, uma empresa que opera em mais de um Estado não consegue ser eficiente. Há várias empresas no Brasil que precisam conhecer 27 regimes tributários diferentes e acompanhar sua evolução. Se um fiscal entra na empresa, ele encontra algo errado, porque ninguém consegue entender a bagunça. É impossível acompanhar tudo, pois as regras de tributação compreendem leis, decretos e convênios do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), todos em linguagem hermética. Além disso, quase todos os Estados adotaram uma estratégia horrorosa, em que o fiscal entra na empresa, autua e encaminha o auto para o Ministério Público, para exame da hipótese de crime tributário. Assim, as empresas, que já tinham que gastar dinheiro com advogados e peritos, também precisarão arcar com a defesa de seus executivos da prisão, por crime tributário. Não há nada parecido no mundo. É uma insanidade.
Broadcast: Será difícil convencer os Estados a abrir mão do ICMS. Maílson: Isso porque o ICMS é o principal instrumento de manobra dos governadores. Hoje, eles anunciam isenções em comícios, criam regimes especiais. O álcool, por exemplo, tem várias alíquotas no País, assim como os automóveis e o setor de telecomunicações. Não é à toa que o Brasil é o campeão de horas gastas para se lidar com tributação. Para fazer a reforma, o governo precisa convencer os governadores de que todos ganharão com a adoção do IVA.
Broadcast: O senhor acredita que o atual governo terá espaço para tocar as mudanças? Maílson: Zero. A reforma tributária exige capital político e preparação do projeto, além de uma boa campanha de marketing e de convencimento dos governadores. Isso pressupõe um presidente eleito diretamente, com legitimidade e liderança, capaz de conduzir essa obra.
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Broadcast: Se a reforma não passar, nunca escaparemos da sina do baixo crescimento? Maílson: Não. Se não conseguirmos a reforma, o Brasil vai ficar para trás. A tendência é piorar.
Broadcast: Para fomentar os investimentos e o próprio crescimento, o governo também tem tentado emplacar a Taxa de Longo Prazo (TLP), como alternativa à TJLP nos contratos firmados com o BNDES. A proposta é razoável?Maílson: A TLP, se aprovada, vai ser o gatilho para uma revolução no crédito no Brasil. Eu fico pasmo de ver como a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) se coloca contra a nova taxa. Em primeiro lugar, o Brasil até hoje tem uma situação dificilmente encontrada em outros países, em que o burocrata tem poder de gerar gasto público. Isso ocorre porque é ele que concede o crédito com o subsídio implícito. O custo da operação fica oculto na dívida pública. A proposta da TLP não impede a concessão de subsídio. Em todos os países é possível encontrar o subsídio creditício, sempre que o retorno social de um empreendimento é superior a seu retorno privado. Daí que existe banco de fomento como o BNDES em todo mundo, inclusive nos EUA.
Broadcast: Mas quem decide lá não é o burocrata. Maílson: Quem decide é o Congresso. O subsídio vai disputar espaço no orçamento com outras atividades - pode ser de infraestrutura, pode ser de educação. Só que hoje, com a TJLP, não disputa nada. E não é um deputado nem um senador que aprova o subsídio; é um burocrata do BNDES. É incrível que os deputados que estão contrários à TLP não tenham percebido que a taxa devolve ao Congresso o seu papel fundamental numa sociedade civilizada, que é autorizar toda e qualquer despesa, inclusive de subsídio.
Broadcast: Por que no Brasil é diferente? Maílson: Essa é uma sistemática que existe desde os anos 1930 e esteve muito associada ao crédito rural proporcionado pelo Banco do Brasil. Quando se acabou com a conta de movimento, em 1986, e se criou em seguida a Secretaria do Tesouro Nacional, os relatórios diziam que o Tesouro não deveria emprestar recursos abaixo do custo de captação. O ideal era ter incluído isso numa lei, mas era apenas uma sugestão de diretriz. A gente se mirava, na época, numa lei que tinha sido aprovada nos EUA nessa direção. No Brasil, o governo de Dilma Rousseff, com a nova matriz econômica, criou uma nova conta de movimento, que é o suprimento do Tesouro ao BNDES. Por isso, os burocratas do BNDES autorizaram despesas públicas superiores às do Bolsa Família.
Broadcast: A TLP vai, de fato, ajudar o crédito? Maílson: A TLP pode ser o início de uma revolução no crédito. Isso porque a TJLP reduz a potência da política monetária. O papel fundamental da taxa de juros do BC é, através de sua transmissão no mercado de crédito, influenciar a demanda e os preços. Só que, no Brasil, metade do crédito não é influenciada pela Selic (a taxa básica da economia). A TLP, quando estiver em plena operação, vai reduzir a taxa de juros estrutural do País. Então, teremos juros parecidos aos do Chile e da Colômbia.