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Política externa ''deste tamanhinho''

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Tendo como pano de fundo as lições cívicas que o Senado vem ministrando ao eleitorado brasileiro, têm ocorrido fatos relevantes quanto à política externa do País. A diplomacia do presidente Lula, depois de várias experiências ingênuas de patrocínio de ideias inviáveis como a taxação de armas, passagens aéreas ou fluxos de capital, centrou-se, afinal, em objetivo crível, de defesa da prioridade da conclusão da Rodada Doha de negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa foi a posição brasileira nas reuniões de chefe de Estado no âmbito do G-20 realizadas na esteira da crise financeira que se iniciou em 2008. Entretanto, a tépida reação dos grandes protagonistas deixava entrever a baixa probabilidade de que a diplomacia brasileira tivesse sucesso na sua tardia catequese multilateralista. Nas últimas semanas o Itamaraty se convenceu publicamente de que a Rodada Doha não será concluída tão cedo. É certo que, como se apressou em destacar o chanceler brasileiro Celso Amorim, os Estados Unidos não demonstram interesse sério no assunto. Mas o desinteresse é mais generalizado e inclui outros protagonistas importantes no impasse de 2008, como a Índia. Nem Bruxelas nem Beijing parecem entusiasmadas com o tema. No Brasil, a ênfase nas negociações multilaterais havia servido de justificativa sistemática para o pouco entusiasmo em relação a negociações comerciais de âmbito mais restrito. No caso extremo, sepultou-se a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), ao final com a conivência dos Estados Unidos. As negociações entre Mercosul e União Europeia foram, também, paralisadas à espera do Godot genebrino. O impasse na OMC certamente terá estimulado um balanço no Itamaraty sobre as realizações concretas da diplomacia brasileira desde 2003. No terreno político houve desenvolvimentos significativos, especialmente no âmbito sul-americano, embora possam caber dúvidas quanto à esperança de vida de muitas das iniciativas restritas ao âmbito político. O eventual retrocesso será facilitado pela falta de substância para ancorar discursos repletos de boas intenções. Interesses concretos de natureza econômica são fatores essenciais para garantir a estabilidade de iniciativas políticas. A melhoria das relações entre Brasil e Argentina, que evoluíram para a criação do Mercosul, ilustra essa interdependência. No terreno substantivo, isto é, na obtenção de resultados palpáveis que atendessem a interesses brasileiros, o retrospecto no governo Lula é melancólico. Nenhum acordo comercial significativo, nem mesmo com parceiros estratégicos, como a Índia e a África do Sul. Uma forma de racionalizar a escassez de resultados substantivos é enfatizar a importância dos resultados políticos. Paira a sugestão de que é preciso evitar o economicismo e valorizar devidamente as iniciativas estritamente políticas. Mas a argumentação é pouco convincente até para o Itamaraty. Embora a essa altura da partida seja quase impossível alterar o balanço modestíssimo de realizações concretas, há indicações de que é provável a ressurreição das negociações entre o Mercosul e a União Europeia. O ministro Amorim detectou, talvez estimulado pela ânsia em obter resultados, que "os europeus estão mais pragmáticos". Entretanto, a julgar com base na declaração de autoridades europeias, essa percepção pode ser infundada. O ministro das relações exteriores da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, em recente visita ao Brasil para fazer o lobby espanhol para o trem-bala Rio-São Paulo, declarou estar muito otimista em alcançar um acordo, indicando que os europeus querem estabelecer novos parâmetros de negociação, pois os acordos do século 21 não podem se concentrar "na exportação ou importação de carnes ou produtos agrícolas". A economia política das negociações comerciais opõe, no Brasil, interesses industriais protecionistas a interesses agrícolas interessados na abertura dos mercados externos. Não é fácil vislumbrar como serão acomodados os interesses exportadores agrícolas nessa negociação, a menos que a pressa em obter algum resultado concreto induza os negociadores brasileiros a aceitarem um pacote desequilibrado nas negociações com Bruxelas. Paralelamente, deteriora-se o quadro político no norte da América do Sul. A questão das bases dos Estados Unidos situadas na Colômbia acirrou os ânimos já exacerbados, em meio aos persistentes esforços de desestabilização oriundos de Caracas. É claro que os Estados Unidos foram pilhados em situação delicada, por não terem conduzido um processo de consultas que incluísse os vizinhos afetados pela decisão. Mas as declarações de Hugo Chávez são recorrentemente desestabilizadoras. E é manifesto o partidarismo das declarações brasileiras em relação ao assunto, sempre lenientes com Chávez - com deslizes "deste tamanhinho" - e muito severas com Álvaro Uribe. Mostrando que "al Itamaraty se le fué la mano". O mais preocupante é que essa atitude contamina os altos escalões do governo quando se trata de avaliar os governos populistas de nossos vizinhos. Vai além da leniência e beira a fascinação quando se trata de considerar as piruetas midiáticas de Hugo Chávez. Guardadas as proporções, a comparação histórica que parece apta é o cretinismo apaziguador de amplos círculos na Grã-Bretanha e na França, na década de 1930, na sua admiração por Benito Mussolini. Lembranças de Pinóquio vêm à mente: "Se todos os gatos fossem como você, que sorte para os ratos." Até quando o Palácio dos Arcos vai endossar as aventuras de Chávez? *Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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