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Portaria do governo abre brecha para uso de relógios de ponto sem certificação do Inmetro

Para associação de juízes do trabalho, se mudança for efetivada, 'deixará de existir qualquer mecanismo de controle de horário bilateral'; Inmetro afirma que nova modalidade é menos confiável

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Por Luiz Vassallo
Atualização:

Por meio de uma portaria que estabelece diversas mudanças na legislação trabalhista, o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, abriu uma brecha para que empresas sem certificação do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) passem a fornecer relógios de ponto. Consultado pelo governo, o próprio instituto afirmou que a nova modalidade é menos confiável. Juízes do trabalho avaliam que o modelo sem a certificação vai provocar insegurança jurídica. O mercado de empresas do setor também se movimentou e contratou um parecer de advogados que aponta fragilidades do sistema. 

O relógio de ponto tradicional, aquele pendurado na porta das empresas para marcação com o cartão de trabalho e que emite um recibo nos horários de entrada e saída de empregados, recebe o nome de Relógio de Ponto Convencional, ou REP-C. Esse modelo foi regulamentado no governo Lula, em 2009. À época, ficou estabelecido que o Inmetro fiscalizaria o relógio de ponto para averiguar sua precisão, memória e armazenamento, a inviolabilidade - por empregador e funcionário - e uma porta USB externa que poderia somente ser utilizada para que auditores do Trabalho fiscalizassem o equipamento. Levou sete anos, até 2016, para que o mercado que fornece esse tipo de equipamento conseguisse se ajustar totalmente às condições impostas pela legislação.

O ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni; portaria cria software que armazena em nuvem dados de entrada e saída de funcionários e que não precisaria passar pelo crivo do Inmetro. Foto: Dida Sampaio/ Estadão

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Com a portaria do governo Bolsonaro, a fiscalização do REC-C permanece inalterada e fica mantida a fiscalização pelo Inmetro. Por outro lado, o texto cria o chamado Registro Eletrônico de Ponto via Programa, ou REP-P, que é um software que armazena em ambiente de nuvem os dados de entrada e saída das empresas. O sistema foi criado para facilitar a marcação de ponto em trabalho remoto, o home office. O programa fornece os comprovantes dos registros em formato PDF a quem se propuser a fiscalizar, e também a empresas e funcionários. Porém, há um detalhe: o REP-P não precisaria passar pelo crivo do Inmetro. 

O novo sistema abre as portas do mercado a fornecedores que teriam somente a imposição de registrar o software no Instituto de Propriedade Industrial (Inpi) - um procedimento usual e protocolar em cadastro de programas e patentes, e tido como menos criterioso para o controle dos aparelhos.

Em um parecer enviado ao governo federal em janeiro, o próprio Inmetro afirmou que a definição do REP-P estipulada pelo governo é “confusa”, e que ele não será equivalente ao REP-C em termos de “confiabilidade e proteção de informações”. De acordo com o instituto, da maneira como foi proposta pelo governo, trata-se de um “modelo menos confiável e cuja fabricação seria substancialmente mais simples”.

“Deste modo, entende-se que o REP-P, como proposto, pode levar a um retrocesso técnico por parte da referida indústria, uma vez que a maior facilidade de construção do REP-P tende a inviabilizar a fabricação do REP-C no decorrer dos anos e privilegiar produtos sobre os quais não se pode objetiva e prontamente atestar a qualidade”, disse o Inmetro. 

No mercado de fornecedores desse equipamento, a preocupação é que empresas que levaram anos para se adaptar às imposições do Inmetro venham a ganhar concorrência de outras que não precisem passar pelos mesmos procedimentos. A Associação Brasileira de Tecnologia para o Comércio e Serviços (Afrac), que tem como filiadas empresas do setor, chegou a contratar um parecer jurídico crítico ao sistema. “No caso em estudo, a proposta de criação do REP-P vai na contramão da necessidade de certeza e segurança na aplicação do direito. O Sistema de Registro Eletrônico de Ponto deve evoluir na medida em que alternativas tecnológicas evoluem e novas perspectivas vão surgindo, e não o contrário”, afirmou, no parecer, o advogado Marcos Saraiva, contratado pela Afrac.

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A mudança também despertou a preocupação de juízes do trabalho, responsáveis por julgar processos de empregados e empregadores, que muitas vezes esbarram em questões relacionadas ao registro de ponto, como a das horas extras de jornada. A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Noêmia Porto, enviou à Secretaria de Relações de Trabalho um ofício em que disse que "a partir dessa alteração, se for efetivada, deixará de existir qualquer mecanismo de controle de horário bilateral". "As empresas simplesmente alegarão que não houve a prestação de horas extras porque não constam de seus sistemas próprios e inacessíveis". 

Ministro do Trabalho responsável pela última portaria que dispôs sobre o tema, o presidente do PDT, Carlos Lupi, relata ao Estadão ter mexido em um “vespeiro” quando decidiu exigir uma fiscalização mais rígida no sistema de ponto. “Qual era o vespeiro? O sistema bancário, porque normalmente o sistema bancário pagava horas extras sem registro. Ou seja, botavam em um envelopinho, e davam mais cem, duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos.”

“Conforme fosse o caso de cada trabalhador individualmente sem assinar e regulamentar e colocar isso na folha. Como isso ia por fora e o trabalhador assinava um recibo, não continha nesse pagamento os impostos de INSS, fundo de garantia devidos pela hora extra. Quando comecei a tocar nisso, eu vi que mexi num vespeiro e foi uma guerra contra mim a partir da introdução do sistema de ponto eletrônico”, conta. Presidido por Lupi, o PDT moveu uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender trechos da portaria que criou o REP-P.

Ao Estadão, o Ministério do Trabalho afirmou, por meio de nota, que a portaria de 2009 precisava de atualização. “O REP-P Registrador Eletrônico de Ponto via Programa foi idealizado para atender ao desenvolvimento tecnológico e às mudanças do mundo do trabalho. Sem perda da segurança jurídica, necessária e imprescindível nas relações de emprego e trabalho”.

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A pasta reforça que a elaboração da portaria foi amplamente discutida e submetida a consultas públicas, e que recebeu 693 contribuições da “sociedade civil, empresas, associações e entidades sindicais”. 

“Além das consultas públicas, foram realizadas reuniões técnicas com representantes das confederações nacionais das categorias econômicas e com representantes das centrais sindicais dos trabalhadores, os quais participaram ativamente da elaboração da minuta em referência. Da mesma forma, a minuta, ainda, foi submetida à apreciação e controle social por meio de discussões havidas junto ao Conselho Nacional do Trabalho, inclusive, com a realização de reuniões bipartites com as bancadas”, diz a pasta.

O Ministério do Trabalho ainda afirma que os “princípios jurídicos basilares” da portaria de 2009 foram “repetidos na minuta de portaria”. “O REP-P foi idealizado dispondo de modernos sistemas de segurança da informação. Por meio do código hash (SHA-256), gerado por um algoritmo, será mantida a integridade, a rastreabilidade e a confiabilidade dos dados inseridos pelos trabalhadores no sistema (batidas de ponto)”. 

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“Qualquer alteração nesses registros será facilmente detectada. O REP-P deverá possuir certificado de registro de programa de computador junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI. Os comprovantes das marcações de ponto tanto nos REP-C e REP-P poderão ser entregues aos trabalhadores em formato de arquivo eletrônico, enviados por diversas formas disponibilizadas pelas modernas tecnologias (e-mail, WhatsApp e etc.). Ou seja, em ambos os casos, o trabalhador terá acesso às suas marcações para conferência”, conclui a pasta.

O Inmetro afirmou ao Estadão que “participa de reuniões conjuntas com o Ministério do Trabalho e enviou dois documentos quando do período de consulta pública, elaborados por servidores técnicos em segurança cibernética”. “Não se trata de um posicionamento da instituição, mas uma colaboração entre equipes técnicas de ambos os órgãos, com o intuito de aprimorar as soluções desenvolvidas”.

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