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Poucas lições da história

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Com o Brasil imerso na mais aguda crise política e econômica da história republicana, têm proliferado tentativas de extrair lições de crises precedentes. As crises eminentemente políticas – 1937, 1945, 1954, 1955 – têm interesse relativamente modesto. Da mesma forma as crises que, em maior ou menor medida, refletiram a deterioração das condições econômicas mundiais, como foi o caso em 1930, com a “grande depressão”, e no início dos anos 80, com a explosão das taxas de juros internacionais. O impeachment de Collor, em 1992, foi anterior à legislação sobre responsabilidade fiscal. O possível parentesco da crise atual é com outras crises de “alto conteúdo local”, ou seja, causadas por fatores preponderantemente internos, como a do início doas anos 60. O golpe de 1964, além disso, desperta particular interesse entre analistas que buscam identificar razões golpistas na tentativa de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Há semelhanças importantes entre a crise do governo Goulart e a crise atual, especialmente no terreno econômico. Tal como agora, a deterioração do quadro econômico forçou o governo a promover uma reversão da política econômica, bem caracterizada no Plano Trienal do início de 1963. De natureza ortodoxa, propunha a redução da inflação anual de 50% para 10%. Joaquim Levy fez o papel de San Tiago Dantas e Celso Furtado, em 1963. Depois de um quadrimestre, o plano proposto pela “esquerda positiva” fracassou, em meio a críticas acerbas da “esquerda negativa”. Seguiram-se a radicalização e a perda de espaço político pelo governo, que culminaram no golpe. Mas há também contrastes fundamentais entre a situação em 1963 e a crise atual. A herança catastrófica que caiu na cabeça de Dilma Rousseff foi gerada por ela mesma. Mas é difícil de atribuir a Jango a herança desastrosa recebida pelo parlamentarismo: desequilíbrio fiscal e de balanço de pagamentos com a inflação acelerando. O parlamentarismo foi singularmente ineficaz no equacionamento de tais problemas, sendo emblemático o ambicioso Programa de Governo. Bases. Análise da Situação Econômica e Social do Brasil, de setembro de 1961, verdadeira negação do mote que governar é escolher com total capacidade de ordenar prioridades. Embora a economia estivesse registrando taxas de crescimento cadentes desde 1958, em 1962 ainda cresceu quase 7%, quase 4% em bases per capita. A queda de mais de 2% do PIB per capita em 1963 parece modesta, comparada à queda de 8% nos últimos três anos do governo Rousseff. Mas a inflação, já em 50% em 1962, decolava. Jango governou no auge da guerra fria. A fracassada invasão da Baia dos Porcos, em Cuba, precedeu a sua posse de poucos meses. A crise dos mísseis entre EUA e URSS foi em outubro de 1962, quando o parlamentarismo agonizava. Hoje, só um paranoico extremado poderia sugerir que haja pressão relevante do “capitalismo internacional” para derrubar Dilma Rousseff. Quanto à disseminação e magnitude da corrupção, não há, também, nenhum paralelo possível entre hoje e o período pré-1964. Há 50 anos não havia nada parecido com a contaminação da classe política no mensalão e no petrolão. Jango pedalou nas contas públicas, usando as tradicionais operações promíscuas entre Banco do Brasil, Carteira de Redescontos e Tesouro Nacional. Mas não havia Lei de Responsabilidade Fiscal, como nos dias de hoje. O golpe de 1964 culminou de uma série de tentativas desde 1954, inclusive o golpe torto de 1961 contra o próprio Jango. Não há argumento decente que justifique a ruptura da legalidade constitucional no início da ditadura. Mas, com a redemocratização, as Forças Armadas voltaram à caserna. Em contraste com o golpe de 1964, a atual iniciativa de impeachment tem base legal. Se terá sucesso, dependerá do Congresso Nacional. O que é certo é que não é fácil extrair lições da história para entender a crise atual.*Marcelo de Paiva Abreu é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge e professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio

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