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Procura-se: Ricardo quer um emprego

O 'Estadão' acompanhou o jovem de 22 anos, na faixa etária com maior índice de desempregados, segundo o IBGE, na sua busca por trabalho em São Paulo

Por Diego Moura
Atualização:

Ricardo só não fumava porque não tinha como comprar um cigarro. Para ele, dar umas tragadas é inevitável em momentos de ansiedade. E aquele era um desses momentos. O garoto de 22 anos com a barba rala e meio por fazer, metido numa calça social preta e camisa cinza clarinha, aguardava a hora de sua tão esperada entrevista de emprego. Os dentes brancos emoldurados pelo aparelho odontológico contrastavam com a pele negra, enquanto falava. 

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O processo de seleção, no dia 21 de julho, era para uma vaga de controlador de acesso - esses homens de terno e gravata que nos acostumamos a chamar de "seguranças", mas que sempre fazem mais do que isso: nos ajudam quando precisamos saber para qual guichê temos de ir, pedem nosso RG, tiram foto nossa em recepções de prédios comerciais e ainda verificam se está tudo sob controle nas imediações. 

Com mais de 20 concorrentes, a entrevista começaria às 14 horas. Ricardo Otavio dos Santos se adiantara em uma hora e esperava do lado de fora do Centro de Apoio ao Trabalho (CAT) da Luz, na Avenida Prestes Maia, região central de São Paulo. "Melhor adiantar que atrasar", riu, nervoso. Ele sabe que não pode ter direito à preguiça. Quem precisa de trabalho com urgência descarta trivialidades como virar para o lado em busca de mais cinco minutinhos de sono. Isso é luxo. E luxo não combina com desemprego. 

Desde que deixou o posto como atendente de telemarketing, no dia 23 de junho, Ricardo passou a fazer parte da massa compilada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como a maior taxa de desemprego: os jovens de 18 a 24 anos. Em junho, o índice nessa faixa etária ficou em 17,1%, ante 6,9% da taxa média.

O jovem procurava uma vaga fora do setor de telemarketing. "Não me adaptei ao serviço. É o tipo de emprego que você usa só pra estabilizar, depois sai." Queria trabalhar em portaria ou como controlador de acesso, tanto que fez até um curso na área. Pagou R$ 360, emprestados por uma tia. Mas poderia ser com vendas também. "Tenho experiência com público. Eu gosto de trabalhar com pessoas." No fim das contas, quer terminar o ensino médio, pagar o que deve e realizar o sonho de aprender inglês, fazer intercâmbio e ser cabeleireiro. "Um dom que já nasceu comigo."

A entrevista só seria possível porque um motorista de ônibus gente boa deu carona lá na Vila Esperança, bairro para os lados da Penha, na zona leste da cidade, onde mora com as irmãs. Mais de uma hora depois chegou ao centro. Às 14 horas, subiu com os concorrentes ao 3º andar do CAT e foi para a sala de número 3, local da seleção. Duas horas e 15 minutos depois, Ricardo voltou à recepção. "Eles disseram que vão entrar em contato, mas eu já sei que não passei. Sempre dizem isso." Voltaria desempregado para casa. De novo. No dia seguinte, enfrentaria uma maratona de conversa-com-um, entra-em-agência-de-emprego, entrega-currículo-ali, entrega-aqui, preenche-ficha-acolá, vai-na-loja-e-pergunta-se-tem-vaga. Seria cansativo, mas ele esperava pôr fim à maré ruim que varria sua vida desde o assassinato do irmão, há dois anos e dois meses. 

'Minha rainha.' "Ele tava virando sócio do patrão dele, como vidraceiro. À noite, ele era músico, tinha uma banda", lembrou. "Meu irmão foi tirado de dentro de casa, minha mãe foi feita de refém e levaram ele e mataram na esquina da nossa rua." Segundo Ricardo, tudo por causa de uma dívida com uma mulher. Sem mais detalhes. Em novembro do ano passado, uma prima morreu com câncer de mama e, logo depois do Natal, morreu o tio. "Quem ia esperar que iam matar meu irmão, mano? Ninguém."

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Nada, porém, parece ter abalado mais Ricardo do que a morte da mãe, às vésperas dos dois anos do assassinato do irmão. Empregada doméstica a vida toda, dona Zilda Luzia dos Santos teve complicações por causa de uma tuberculose e morreu há dois meses. "Ela era minha rainha", emociona-se. "Ela fazia questão de me levar com ela para o trabalho e mostrar o que ela era. Toda educação que eu tenho, tudo o que eu aprendi, de não furtar, não roubar, aprendi com ela." Além do mais, Zilda respondia pelo sustento da família. "Perdi meu chão."

Dia seguinte. Por volta do meio-dia de quarta-feira, 22, com vento gelado e temperatura beirando os 14ºC, o jovem chegou à Rua Barão de Itapetininga, centrão de São Paulo, para recomeçar a busca por emprego. Imprimiu cerca de 30 currículos na firma do cunhado. Em meio aos "plaqueiros", homens e mulheres que povoam a rua contratados por agências de emprego para indicar vagas, conseguimos quatro endereços. "Vambora! Que hoje é mais um dia", animou-se. "A gente tem que ter força de vontade." 

Não havia vagas naquele momento em duas das agências de emprego indicadas. Numa delas, a moça mal ergueu os olhos dos papéis que remexia. Falou apenas: "Deixa o currículo". Nas outras duas, Ricardo preencheu fichas e anexou a folha com suas experiências anteriores: ajudante geral, atendente, vendedor. Em outro escritório, especializado em vagas na área de segurança, um sujeito mais parecido com policial do que com recepcionista informou: "Não tem vaga para sua região, só deixando currículo mesmo". Passamos por mais três lojas onde ele também deixou currículos. 

O otimismo começava a ir embora quando entramos na última agência de emprego daquele dia. Quase 15 horas. Apenas outro jovem aguardava nas cadeiras para ser chamado para a entrevista. A recepcionista Rose, de 46 anos, está no ramo há muito tempo. "Essa pilha de papel aqui é só de currículo da parte da manhã", mostrou. O montinho deveria ter umas 200 folhas. 

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Se nos últimos tempos cresceu o número de pessoas buscando trabalho? Ela assobia. "Ô, se aumentou." Além dessa enxurrada, a situação também se complicou para as próprias agências. Segundo ela, só nas últimas semanas fecharam mais de 40. Às vezes, na calada da noite. "Uma moça conhecida minha chegou para trabalhar e ficou sabendo que a agência tinha ido embora dali."

Pedaço de papel. "Essa vaga é pra mim", sublinha o "é", com força. Ele busca forças nos quadrinhos motivacionais cristãos pregados na parede, enquanto preenche a ficha de entrada. Após a entrevista saberá na hora se está empregado ou não. O telefone toca. "Pode entrar", diz Rose. Agarra a mochila surrada e entra na sala. Espero. Uma hora depois, Ricardo sai com uma folha de perguntas e respostas. Preenche tudo e volta para dentro. Mais 30 minutos. 

Ouço o agradecimento à recrutadora. O jovem volta cabisbaixo à recepção e fazendo que não com a cabeça. De repente, se transforma em um grande sorriso. "Tô contratado! Amanhã faço o exame médico e, se tudo der certo, começo segunda", comemora. Será repositor de estoque em um mercado de Santana, na zona norte, a R$ 900 por mês, vale-refeição de R$ 10 e vale-transporte de R$ 7. O que vai fazer com o primeiro salário? "Pagar minha tia que me ajudou com o curso (de controlador de acesso)." Os olhos brilham. É mais um dia de sua batalha, como ele diz. "Tá clareando e vai clarear mais ainda. São só 90 dias, um contrato. Então tem que fazer com que ele vire mesmo o meu trabalho, o meu suor."

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Ele caminha mais leve. Sorri, enquanto conversamos numa das mesas do McDonald's da Barão de Itapetininga. Sua alegria se apaga quando vê uma criança com roupas esfarrapadas e olhos fundos, que se arrasta de mesa em mesa pedindo um lanche. Ela não deve ter mais do que cinco anos. Ricardo não se conforma como "um pedaço de papel", o dinheiro, pode mandar no mundo e valer mais do que a dignidade das pessoas. "Desculpa, mas minha alegria não vale um pedaço de papel."

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