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Quando os números torturam

No caso da epidemia de covid-19 que enfrentamos, estamos diante de um enigma de rara opacidade

Por Luís Eduardo Assis
Atualização:

Reza uma antiga máxima, atribuída ao ex-ministro Delfim Netto, que os números podem confessar qualquer coisa, se forem diligentemente torturados. Jamie White (em Crimes Against Logic, 2004) vai na mesma linha e diz que a estatística é o arsenal de armas químicas da persuasão. Com a covid-19, todavia, parece ser diferente. Aqui, os números são melindrosos, escorregadios, e não se deixam levar facilmente pelos estratagemas de seus algozes.

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O total de infectados, por exemplo, é desconhecido. A estatística que explode todos os dias sobre nossas cabeças se refere ao número de pessoas testadas que registraram resultado positivo. Se na testa de cada contaminado surgisse um triângulo isósceles verde, tudo seria mais simples. A doença, no entanto, pode ser assintomática ou ter sintomas leves. Isso significa que o número real de infectados deve ser um múltiplo dos quase 2 milhões de pessoas que constam das estatísticas hoje. Nem sequer podemos supor que essa subestimação é constante ao longo tempo, já que, com o número crescente de testes, este viés tende a diminuir. Se aplicarmos o número de mortos ao total de casos testados e confirmados, teremos uma taxa de fatalidade de aproximadamente 5%. É menos que o sarampo – mas para a covid-19 não temos vacina.

Também é preciso considerar o período de incubação da doença, ou seja, as mortes de hoje não podem ser comparadas com os infectados de hoje, já que, como o número de infectados cresce na frente, essa taxa acaba sendo subestimada. Mais ainda, se a comparação for feita com o número total de contaminados, muito maior que o número reportado, a conclusão seria de que a mortalidade é muito mais baixa que 5%. Este problema poderia ser resolvido com testes amostrais amplos que pudessem estimar o porcentual contaminado de toda a população. Mas aqui temos dois problemas: não só não há testes em número suficiente, como os testes disponíveis não são precisos e dão um grande número de falsos negativos.

Tudo isso para dizer que estamos diante de um enigma de rara opacidade. Os números não se deixam capturar e, portanto, torturá-los é de pouca valia.

Primoroso estudo de P. Surico e A. Galeotti (The Economics of Pandemics: the case of Covid-19, 2020) constata que “estamos definindo políticas baseados em evidências muito incompletas”. Qual é a saída? A saída é confiar na ciência. Até a segunda metade do século 19 a expectativa de vida do homem era similar à de um chimpanzé. Foi o primado da metodologia científica sobre o obscurantismo que fez com que a população mundial aumentasse de forma exponencial. Nos primeiros 1.700 anos da era cristã, a população mundial cresceu em 415 milhões de almas. Desde então, em 320 anos, o aumento foi de 7,2 bilhões de pessoas.

Como assinala D. Wooton em obra seminal (The Invention of Science, 2015), uma pessoa formalmente educada que vivesse na Europa no início do século 17 acreditava em astrologia, geração espontânea, unicórnios, bruxaria, na transformação de metal em ouro e no geocentrismo. Pouco mais de um século depois, o mesmo europeu educado tinha varrido essas bizarrices de seu arsenal de conhecimento – o que não significa que em 2020 não existam pessoas com ideias encravadas no passado distante.

Questionar a ciência e o método científico, como faz o inquilino do Palácio da Alvorada, equivale a nos condenar à idade das trevas. Os números da covid-19 são impenetráveis e confusos, mas confrontar o consenso entre os especialistas a favor do isolamento social é cultivar o mais lúgubre obscurantismo. O que os números revelam voluntariamente, sem serem torturados, é que ignorar a ciência é desprezar a vida. 

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*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM

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