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Renda básica: o que é, quais os objetivos e efeitos e onde é aplicada

Tire suas dúvidas sobre o benefício pago pelo Estado que voltou à discussão com a crise causada pela pandemia de covid-19

Por Marina Aragão
Atualização:

Devido ao isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, milhões de pessoas tiveram de parar suas atividades profissionais - principalmente as que dependem do trabalho informal - e perderam a garantia do seu sustento. A situação escancarou a desigualdade social no País e trouxe de volta a discussão sobre a renda básica.

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Atualmente, o Bolsa Família beneficia mais de 14 milhões de famílias, com repasse mensal de R$ 190, em média. Criado durante a pandemia, o auxílio emergencial chega a mais de 67 milhões de pessoas. O benefício começou com parcelas de R$ 600 e agora é de R$ 300. O governo estuda a criação de um novo programa social, que substituiria o Bolsa Família, mas ainda não chegou a um modelo de financiamento.

Programas de transferência de renda para a população mais pobre, nos moldes do auxílio emergencial, também estão sendo discutidos por candidatos a prefeito nas principais cidades do País nas eleições deste ano. Com variações nos valores e no alcance dos beneficiados, há propostas em ao menos nove capitais. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Manaus, Curitiba, Goiânia e Porto Alegre, candidatos incluíram em seus programas de governo ou prometeram em entrevistas e pronunciamentos durante a campanha criar repasses de R$ 100 a R$ 600 por mês.

No entanto, eles não podem ser chamados de renda básica: não são universais nem incondicionais - cernes da proposta. Sobre os que estão em vigor, por exemplo, o Bolsa Família beneficia pessoas de baixa renda e exige que matriculem os filhos na escola e mantenham sua vacinação em dia. O auxílio emergencial favorece trabalhadores mais pobres, informais e desempregados, além de ser um benefício com data para terminar.

Confira como a renda básica se aplica e se diferencia dos benefícios vigentes.

Devido ao isolamento social, milhões de pessoas tiveram de parar suas atividades profissionais. A situação escancarou a desigualdade social no País e trouxe de volta a discussão sobre a renda básica. Foto: Alex Silva/Estadão

O que é a renda básica?

A renda básica se configura como um benefício concedido pelo Estado a todos os cidadãos de um país, de forma contínua, regular e incondicional, sem quaisquer distinções ou requisitos prévios. A economista Lena Lavinas, professora titular da UFRJ e membro do Comitê Consultivo Acadêmico da Basic Income Earth Network (Rede de Renda Básica Universal) no Reino Unido, explica que o benefício deve ter cinco características:

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  • Universal: é pago a todos os cidadãos, sem nenhum fator de discriminação;
  • Incondicional: é pago sem nenhum tipo de exigência, como por exemplo trabalhar ou manter os filhos na escola;
  • Individual: é pago de forma individual - e não, por exemplo, para as famílias;
  • Permanente: não está sujeito à volatilidade dos ciclos econômicos, por exemplo;
  • Financiado pelo poder público: deve estar previsto no Orçamento do Estado.

Qual o objetivo da renda básica?

A finalidade primeira da renda básica é instituir uma condição comum a todos os membros de uma sociedade, estabelecendo uma “igualdade radical” - ou seja, todos os cidadãos de um país devem receber uma mesma quantia da riqueza nacional, paga pelo Estado, independentemente de sua origem, cor, idade, sexo, credo, status social, profissão, patrimônio ou nível de renda ou qualquer outro fator discriminante, explica Lena.

A outra finalidade do programa, de acordo com a especialista, é assegurar a liberdade individual, ao impedir que as pessoas em qualquer circunstância (impossibilidade de trabalhar por qualquer razão, falta de recursos próprios, vulnerabilidade, crises) se vejam privadas de escolha para tocar suas vidas. “É, portanto, uma forma de emancipação numa economia de mercado marcada pela instabilidade socioeconômica e incerteza.”

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Nesse sentido, a incapacidade de combater o desemprego com meios convencionais tornou-se, na última década, uma das principais razões para a ideia da renda básica ser discutida por toda a Europa por um número crescente de estudiosos e organizações. De acordo com a Rede Brasileira de Renda Básica - organização que reúne especialistas, pesquisadores, ativistas e entusiastas em prol do assunto -, a política social e a política econômica não podem mais ser concebidas separadamente.

Por isso, a renda básica é cada vez mais vista como uma maneira viável de conciliar dois de seus objetivos centrais: “a superação da pobreza e a redução da desigualdade”, explica o presidente da organização e mestre em Políticas Públicas, Leandro Ferreira.

Ele destaca ainda o “fortalecimento da dignidade das pessoas”. “Você dá o direito para a pessoa de fazer as próprias escolhas e de não ter que se submeter a processos vexatórios para provar a sua condição socioeconômica e ter o seu direito garantido”, diz.

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Onde a renda básica é aplicada atualmente?

Foi no Estado do Alasca, nos Estados Unidos, a primeira experiência concreta de renda básica, que vem desde 1982 até hoje. Lá, todos os cidadãos, indistintamente, recebem uma quantia anual do governo baseada nos valores dos rendimentos dos royalties do petróleo daquele ano.

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Outro lugar que conseguiu implementar uma renda básica em moldes parecidos fica no Brasil: Maricá, uma cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. O benefício, pago por meio de uma moeda local, chamada mumbuca, distribui renda para mais de 14 mil famílias com renda de até três salários mínimos. Cada membro da família beneficiada recebe uma quantia de 130 mumbucas (R$ 130), advinda da receita do petróleo e da participação especial do pré-sal. Quando a pandemia começou, a prefeitura de Maricá ampliou o benefício para 300 mumbucas por pessoa.

No Irã, a experiência foi implementada em 2010 para prover uma renda de US$ 40 para todas as famílias. No entanto, desde 2013, o programa sofre os impactos das sanções comerciais ao país e da inflação. Hoje, o benefício ainda contempla cerca de 18 milhões de famílias, 90% da população, mas com metade do valor inicial.

Na Finlândia, a curta experiência de dois anos da renda básica foi encerrada e usada apenas como teste. No Quênia, objeto de estudo do vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT), os pagamentos de US$ 22 são feitos aos beneficiários por meio de um aplicativo de celular, o M-pesa. Não precisa ter conta bancária para receber e as pessoas gastam o dinheiro como desejam.

De acordo com Leandro Ferreira, experimentos como esses aqui e fora do País têm dois tipos de ganhos: “o primeiro é o de aprendizado de gestores públicos, de universidades, de usuários, e nesse sentido, o próprio auxílio é importante, pois é uma espécie de subsídio para discutir a garantia de renda. O outro ganho é o debate, a agenda: nunca se discutiu tanto sobre renda básica”.

Embora o Brasil tenha uma lei aprovada - a única no mundo que visa a implementação a nível nacional -, de autoria de Eduardo Suplicy, então senador, nada saiu do papel. Chamada de renda básica de cidadania, a Lei 10.835, sancionada em 2004, previa o repasse de um valor a todos os cidadãos brasileiros ou estrangeiros residentes no País há mais de cinco anos.

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Contudo, a medida é pouco específica, sem detalhes de como, concretamente, seria o programa. O formato permite ainda que a renda básica seja implantada aos poucos, em etapas com abrangência crescente, e cai no dissenso que perdura até hoje sobre como financiar a medida.

Um projeto de lei deste ano, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), altera a lei de Suplicy. O PL nº 2742, que está em tramitação no Senado, prevê a renda básica de cidadania para pessoas em situação de vulnerabilidade social, estabelece o seu pagamento em periodicidade mensal, determina o seu pagamento no lugar no Bolsa Família, caso seja mais vantajoso, e atribui ao Poder Executivo a competência para definir o seu valor.

O contexto da pandemia também foi o propulsor para a criação da Frente Parlamentar da Renda Básica, composta por mais de 200 parlamentares, entre eles Tabata Amaral (PDT-SP) e João Henrique Campos (PSB-PE).

E de onde viria o dinheiro para bancar a renda básica?

Para Ferreira, um programa de renda básica pode começar pelo aperfeiçoamento - em termos de valor e cobertura, principalmente - dos programas que já existem, como o Bolsa Família. De acordo com ele, para que um programa nesses moldes se sustente, há a necessidade de “tornar a carga tributária brasileira mais progressiva”, ou seja, quem tem mais deve contribuir proporcionalmente com mais dinheiro para o financiamento das políticas públicas. “É preciso melhorar a taxação brasileira, porque quem acaba pagando mais são os mais pobres, e, consequentemente, há concentração de renda.”

O especialista em Políticas Públicas explica que todo mundo seria beneficiado com a quantia da renda básica, mas, os mais ricos teriam de contribuir mais por meio de taxação, impostos, que incidiriam sobre sua renda. Entretanto, diz, isso não significa que essas políticas não possam ter um critério socioeconômico para priorizar quem mais precisa.

Esse é um ponto importante, de acordo com Nelson Marconi, economista e coordenador-executivo do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV. “Entendo que não se deveria fazer uma renda totalmente universal, porque teríamos um gasto fiscal maior com uma parcela da população que não deveria receber. Acredito em um programa mais focalizado”, defende Marconi.

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Lena Lavinas afirma que para garantir a “progressividade” e a “justiça tributária” também “é indispensável pensar em formas de taxar adequadamente as grandes empresas de tecnologias, verdadeiras oligarquias digitais, que alimentam gigantescas bases de dados e, graças aos algoritmos e à inteligência artificial, produzem rendas”. De acordo com ela, todo esse capital arrecadado poderia ser transferido para um “Fundo de Capital dos Comuns” e seus dividendos financiariam a renda básica.

Além disso, para delimitar um valor, o economista Nelson Marconi diz que é necessário analisar dois aspectos: a distribuição da renda, para ver quantas pessoas seriam alcançadas, e a questão fiscal, ou seja a capacidade do Estado para o financiamento do programa. Somado a isso, Ferreira destaca a necessidade de se atentar também para a linha de pobreza definida pelo Banco Mundial.

A especialista Lena Lavinas propõe uma quantia no valor de R$ 300, instituída a partir do pagamento de um benefício mensal a crianças desde seu nascimento, benefício esse que elas levariam consigo ao longo de suas vidas, sem jamais perdê-lo.

Quais os efeitos previstos de um programa de renda básica?

Se, quando o Bolsa Família foi criado, em 2003, houve resistência e críticas ao programa, considerado então, por muitos, uma fórmula para parte da população se tornar dependente do Estado, hoje, se discute ampliá-lo, aproveitando a experiência do auxílio emergencial e de experimentos com a renda básica. “Esse é um argumento bastante batido e preconceituoso. Os experimentos demonstram que os beneficiários desse tipo de programa se veem em melhores condições no mercado para trabalhar”, defende Leandro Ferreira.

De acordo com ele, além da superação da pobreza e da redução da desigualdades pretendidas, a implementação de um programa de renda básica traz benefícios para o mercado de trabalho e a economia. “Haveria um efeito multiplicador da economia, as pessoas consumiriam mais bens essenciais, teria um efeito de impactar positivamente as economias e incrementar o PIB”, explica Ferreira.

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