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Revolução na China pode partir dos EUA

Pequim terá de ceder a consumidor americano ou perderá exportações

Por Nathan Gardels
Atualização:

Quem teria pensado que comida para bichinhos de estimação e brinquedos contaminados colocariam em risco o modelo autoritário de crescimento baseado nas exportações que a brutal repressão na Praça da Paz Celestial, em 1989, pretendeu, em parte, assegurar? O então "líder supremo" da China, Deng Xiaoping , que fora expurgado durante a Revolução Cultural, poderia perfeitamente imaginar como um levante político iria descarrilar o percurso estável da China para a prosperidade. Mas com certeza nunca lhe passou pela cabeça, ou pela de seus camaradas descendentes, que os volúveis consumidores americanos algum dia se tornariam, como os estudantes na praça pretendiam, os agentes da transformação revolucionária na China. Em nome da soberania, os líderes chineses persistiram durante um longo tempo oprimindo seus próprios cidadãos enquanto ignoravam a corrupção galopante que prosperava na ausência do império da lei. Mas, graças à globalização, a dependência que a China tem das exportações para os Estados Unidos colocou as demandas políticas do consumidor americano na equação. Os americanos não hesitarão em cortar a corda de segurança das importações e se abster de produtos chineses que possam envenenar suas crianças e matar seus bichinhos de estimação. Diferentemente do trabalho organizado ou das organizações de direitos humanos, os consumidores não precisam se mobilizar para promover uma mudança; basta que eles parem de gastar. E seus agentes de barganha - Wal-Mart, Target, Toys "R" Us - têm um poder imensamente maior que a AFL-CIO (central sindical americana) e a Anistia Internacional para promover transformações na China. Ironicamente, o tratamento de "nação mais favorecida" concedido pelos Estados Unidos em assuntos comerciais para a China (e o posterior ingresso do país na Organização Mundial do Comércio), ao qual grupos de direitos humanos e sindicais se opuseram tão virulentamente no passado, tornou-se um cavalo de Tróia. O futuro da China está hoje tão ligado ao consumidor americano que Pequim será obrigada a controlar a corrupção e fortalecer a regulamentação via o império da lei, ou enfrentar a condenação certa de seu crescimento baseado nas exportações. Nenhuma sanção é mais devastadora que a escolha do consumidor. Viver pelo mercado, morrer pelo mercado. Para os consumidores confiarem em produtos chineses, eles precisam confiar na regulamentação desses produtos. E não é possível confiar na regulamentação sem um império da lei que não se curve a propinas, fraudes e conexões. Historicamente, no Ocidente, foi a burguesia emergente quem exigiu a proteção e os direitos que levaram ao império da lei e à democracia. E o paradoxo extremo do totalitarismo suave de Deng é que privatizar as vidas das pessoas, em última instância, privará as autoridades de seu poder. Quanto mais pessoas passam a desfrutar de liberdades privadas, menos tolerarão que elas lhes sejam tiradas. A globalização, ao que parece, acelerou esse processo, forjando um tipo de coalizão objetiva da crescente classe média chinesa e o consumidor americano a favor do império da lei. A China obviamente não terá de começar do zero para tratar dessa questão. Antes de se aposentar (leia: ser expurgado) numa luta política com (o então premier) Li Peng e (o então presidente e chefe do Partido) Jiang Zemin, em 1997, Qiao Shi sentou-se comigo para uma rara entrevista. Na época, era o terceiro membro na hierarquia do Politburo e presidente do Congresso Nacional do Povo. Enquanto seus competidores ressaltavam o crescimento econômico e o controle partidário, Qiao enfatizava a necessidade do "império da lei e do fortalecimento do sistema legal." Quando nos encontramos no Grande Salão do Povo, ele insistiu em que "qualquer violação das leis pelos responsáveis pelo cumprimento da lei, qualquer atropelamento da lei por autoridades administrativas ou perversão da justiça para ganho pessoal deve ser barrado". Para Qiao, "segundo a Constituição, todo o poder no país pertence ao povo e o povo exerce o poder do Estado por meio do Congresso Nacional do Povo e dos congressos locais do povo em vários níveis. Para assegurar que as pessoas sejam as verdadeiras senhoras do país, que o poder do Estado está verdadeiramente em suas mãos, precisamos fortalecer essas instituições e lhes dar um papel pleno". Quando lhe fiz a pergunta crucial - se o partido estava acima da lei ou a lei acima do partido - Qiao respondeu sem hesitação, para a evidente consternação de seus assessores, que "nenhuma organização ou indivíduo tem a prerrogativa de se sobrepor à Constituição ou à lei". Talvez os líderes atuais em Pequim se sentirão compelidos a voltar ao espírito da agenda de Qiao na esteira da crise atual de confiança do consumidor global nos produtos chineses. Os consumidores avisados provavelmente não comprarão a resposta da China de acusar e executar funcionários graduados - "matar a galinha para assustar o macaco". Eles simplesmente querem que o chumbo seja retirado dos brinquedos de suas crianças ou farão suas compras em outros lugares. O avanço para um império da lei confiável não é democracia, é claro, mas é um grande passo na longa marcha nessa direção. Alguns anos atrás, o então famoso, mas hoje esquecido, dissidente Wei Jingsheng lamentou como a atenção da opinião pública mundial e a da maioria dos chineses havia se afastado "do Muro da Democracia (onde Wei fora preso pregando cartazes pedindo reformas políticas democráticas) para o shopping center". Agora, especialmente com a aproximação dos holofotes das Olimpíadas de Pequim, no próximo ano, parece que as mesas podem estar sendo viradas de novo.

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