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Ricardo Paes de Barros: 'Em disputa de programa mal desenhado, auxílio emergencial ganha disparado'

Para o economista, os 40 milhões que devem receber o benefício em uma segunda rodada, como prevê o governo, estão bem acima do número de desempregados

Foto do author Murilo Rodrigues Alves
Por Idiana Tomazelli e Murilo Rodrigues Alves
Atualização:

BRASÍLIA - O economista Ricardo Paes de Barros, pesquisador do Insper e um dos maiores especialistas do País em políticas sociais, critica o desenho "essencialmente cego" do auxílio emergencial atual e destaca que a previsão do governo, de beneficiar ao menos 40 milhões de pessoas nesta segunda rodada, está muito acima do número atual de desempregados. "Se tiver um campeonato de programa mal desenhado, o auxílio emergencial ganha disparado", critica.

Para ele, é preciso rever a lógica dos gastos mínimos com saúde e educação para dar maior flexibilidade na aplicação dos recursos. Antes de definir um orçamento fixo, o especialista defende primeiro estabelecer um plano plurianual de despesas, com objetivos claros, e só então criar um fundo nacional com dinheiro para bancá-las.

Confira os principais trechos da entrevista.

O economista Ricardo Paes de Barros, pesquisador do Insper e um dos maiores especialistas do País em políticas sociais. Foto: Helvio Romero/Estadão - 24/9/2019

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O auxílio emergencial ainda não saiu. Como aumentar a rede de proteção no pior momento da pandemia? Como conciliar a urgência e necessidade de atender às famílias com alguma contrapartida fiscal que a equipe econômica quer?

O auxílio emergencial teve um dos piores desenhos que se poderia imaginar. Beneficiou 70 milhões de pessoas, enquanto no máximo 10 milhões ou 12 milhões perderam o trabalho durante a pandemia, e o salário daqueles que não perderam o trabalho não caiu. Se considerar os que já vinham desempregados, dá 20 e poucos milhões. O auxílio emergencial é um benefício grande demais, para um número de pessoas grande demais. Na entrada da crise, quando você não sabe o que vai acontecer, é uma boa ideia. Mas a gente não pode continuar com um programa essencialmente cego. Tivemos meses e meses para descobrir quem realmente precisa, para começar 2021 com um programa muito bem focalizado. O auxílio emergencial é hoje uma coisa que não faz nenhum sentido. Se tiver um campeonato de programa mal desenhado, o auxílio emergencial ganha disparado. Ele parte do princípio que a crise é muito mais ampla do que ela é, e isso leva um custo muito maior do que a gente é capaz de suportar.

O governo engavetou momentaneamente a reformulação do Bolsa Família para atender aos anseios políticos de dar uma nova rodada de auxílio emergencial. Essa escolha está equivocada?

O auxílio emergencial foi uma oportunidade ímpar para melhorar o Bolsa Família. Não ter aproveitado, não vejo a lógica. Para isso, precisaria estar mais em contato com as famílias pobres. Precisa é usar os 250 mil assistentes sociais que temos espalhados pelo Brasil para realmente conhecer quem são as cinco milhões de famílias (invisíveis). A retomada da economia é muito importante, mas esses trabalhadores vão precisar de apoio para se reinserir, com assistência técnica, financeira, formação, capacitação, crédito. Isso vai ser impossível se não analisar caso a caso. A política social é feita lá na ponta. O auxílio emergencial é uma tentativa de fazer uma política social por atacado. Se não vai na ponta, vamos fazer uma política mal focalizada, que não atende a necessidade de quem mais precisa e vai ser extremamente cara. E se a gente desvincular dinheiro da educação para gastar com isso, vai ser o erro mais grosseiro que a gente pode cometer. Certamente não vale a pena desviar um níquel da educação para o auxílio emergencial. A gente tem que desindexar a educação por várias razões. Definitivamente não é para ter recurso para colocar no auxílio emergencial.

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O governo fala em 40 milhões de pessoas, incluindo beneficiários do Bolsa Família. É por aí?

Não temos 40 milhões de trabalhadores desempregados ou sem trabalho. Tem uns 20 milhões e poucos, e 12 milhões já estavam desempregados antes da pandemia. A gente pode querer ajudá-los, mas é para isso que serve o seguro-desemprego, o Bolsa Família.

O número continua alto?

Se for 40 milhões de brasileiros, incluindo crianças, idosos, todo mundo, é duas vezes o que eu faria. Se for 40 milhões de adultos em idade ativa, parece gigantesco e vai custar uma fortuna. Precisamos saber quem realmente precisa. Não pode é do nada chegar à conclusão de que existem 40 milhões de pessoas que precisam, que eu não sei quem são e vou continuar sem saber, e gastar esse dinheiro todo para uma transferência que eu não sei se realmente preciso fazer. Temos que gastar menos, mas acima de tudo temos que gastar bem. Gastar cegamente com auxílio emergencial parece ser a pior coisa a ser feita. O Congresso está precisando de um estudo, de alguma argumentação de que realmente o auxílio está bem focalizado e que a quantidade de famílias que precisa dele é dessa magnitude. É mais importante focar na educação dos filhos das pessoas do que tentar na força bruta tirar ele da pobreza por uma transferência de renda.

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Qual é a sua avaliação sobre os mínimos em educação e saúde?

A garantia de todos os direitos sociais é um projeto de longo prazo, ninguém garante educação dentro do mesmo ano. Sair do zero não dá. O projeto de saúde é de longo prazo, construir um hospital, equipar, ter os médicos. Mas também é a primeira infância, moradia, segurança. Você precisa ter um plano de ação que diz o que vai fazer a cada ano, quanto vai custar e por que vai fazer aquilo naquele ano. O Congresso dizer ‘esse ano você tem o dinheiro, o ano que vem não sei’ não funciona. Precisa ter um plano plurianual de como investir nessas coisas. E só por um acaso muito raro, o gasto com esse plano todo ano vai ser uma porcentagem fixa da arrecadação. Suponha que a arrecadação caia no ano seguinte, vou gastar menos? É independente. A chance de esse plano, que é espacialmente desagregado, gerar uma porcentagem fixa da arrecadação em São Paulo e no Piauí é zero também. Em Altamira, que é um município geograficamente complexo no Pará, o gasto por aluno é X. Em Salto, que é um município muito bem organizado educacionalmente em São Paulo, o custo pode ser diferente, porque já construiu as escolas, as estradas, já tem um sistema de transporte.

O que o sr. sugere? No caso da União, o gasto mínimo já é apenas atualizado pela inflação. Precisa ser um valor fixo que vai sendo corrigido?

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A gente está pensando em financiar alguma coisa que a gente não sabe o que é. Primeira coisa é: qual é o projeto educacional brasileiro, quanto ele custa? O padrão mundial é entre 4% e 6% do PIB. Uma maneira de financiar isso é criar um fundo plurianual, onde se coloca, por exemplo, 25% de tudo que arrecada. O fundo é uma tentativa de levantar os recursos para esse plano, não o contrário, eu faço o fundo e você inventa uma maneira de gastar o dinheiro. Cria um fundo. Tem ano em que arrecadação está alta, coloca muito, quando arrecadação está baixa, coloca pouco. E vai tirando aquilo que precisa, que não é 25% da arrecadação todo ano. Tem ano que é 30%, tem ano que é 20%, 18%, 17%, de acordo com o plano. E é diferente em diferentes lugares do Brasil. São Paulo pode ter uma superarrecadação e o Maranhão estar em crise, mas o dinheiro de São Paulo não vai para o Maranhão. Por que, se isso é um país? Tinha que ser mais parecido com FAT (fundo que banca o seguro-desemprego). Não é porque as empresas São Paulo pagam mais para o FAT que o Maranhão vai ficar com desempregado sem receber o seguro-desemprego, porque o dinheiro flui de São Paulo para o Maranhão.

O plano e o fundo criariam incentivos para investir melhor?

Vai ter um incentivo para ter um plano educacional sempre afinado, sempre baseado em evidência. Se eu digo ‘você tem o dinheiro’, qual é a pressão em cima do secretário de educação? Gastar o dinheiro. Ele não precisa ter um plano, chega no final do ano, ele gasta de qualquer jeito. Se você diz ‘eu vou te dar o dinheiro, mas você tem que vir trazer um plano’, eu teria um plano de educação sendo revisitado o tempo todo. Se este ano o legislador julgou que tinha que colocar 6% do PIB em educação, no ano que vem ele pode chegar à conclusão de que tem que ser 6% de novo, ou que tem que ser 7%. Na hora que a gente indexa, estamos dizendo o seguinte: a geração atual é mais inteligente, mais bem informada, eticamente mais responsável do que gerações futuras. Não parece fazer muito sentido, mesmo porque estamos restringindo a geração futura de quanto dinheiro eles vão ter, mas a irresponsabilidade está em como você gasta.Tem que deixar o dinheiro fluir de um ano para o outro, de uma área para outra. A indexação parece uma maneira tosca de lidar com esse problema.

Como seria o funcionamento desse fundo? Os Estados vão querer ceder recursos uns para os outros? Quem decidiria a distribuição?

Não estou dizendo que necessariamente você precisa desse fundo, mas pode ser uma boa ideia, seria um verdadeiro Fundeb, não 27. Hoje o Fundeb é um fundo sem fundo, o que se coloca ali tem que gastar. Ter um fundo dá certa tranquilidade, mas tem que ser flexível no sentido de que possa ser deficitário e eventualmente o governo ter que botar mais dinheiro. O que importa está no plano de desenvolvimento. Quem vai gerenciar, nós temos o Conselho Nacional de Educação, temos conselhos estaduais, municipais. O que é importante para esses conselhos é avaliar o plano e dizer se realmente o Maranhão tem um plano e está precisando de dinheiro. Agora, em que medida São Paulo vai continuar reclamando, veja o caso da vacina. Porque eu sou mais rico, eu vou comprar mais vacina, o Maranhão é pobre e vai ficar com menos vacina? Não cola, todo mundo no Brasil tem direito a ter vacina. Por que quem nasceu no Maranhão vai ter pior educação do que quem nascer em São Paulo? Então sinto muito, a ideia de ser um país é exatamente que as unidades da federação mais ricas vão subsidiar a garantia dos direitos sociais das unidades mais pobres.

A ideia então é mudar a lógica, o mais importante é o plano plurianual. O mesmo para a saúde?

Sim, saúde, segurança. Por que a gente indexa saúde educação e não indexa alimentação, atenção à primeira infância? É um direito social igualzinho à educação, ou segurança, ou trabalho decente. Mas se você quer uma vinculação, vincula o recurso que vai para o fundo, não o gasto, e muito menos no mesmo tempo. Daqui a pouco estamos vinculando o gasto naquele mês. Não faz sentido. Você perde a noção do projeto, a missão do cara é gastar. O Brasil já gasta R$ 1,5 trilhão na área social, não é uma questão de falta de recurso. Um plano não é ‘quero construir uma ponte através desse rio’. O plano é como é a ponte, desenhar, mostrar que ela vai ficar de pé. A lógica tem que ser revertida, vamos ter o projeto e correr atrás de dinheiro.

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O que faltou até hoje e o que precisa acontecer para a gente conseguir essa chave efetivamente?

Umas das coisas que atrapalham é a dificuldade enorme de copiar as maravilhas que o vizinho está fazendo. Estados que têm quebrado isso, como Ceará, têm se beneficiado enormemente. Essa exacerbada independência é legal, mas talvez seja atrapalhando a gente de construir um plano nacional, estadual, municipal, porque cada escola quer ter o seu plano, e aí fica tudo solto.

Não parece ser de interesse do governo ou do Congresso propor um plano nacional de educação, como o sr. está dizendo.

Se isso que você está falando é verdade, e talvez seja, aí é uma questão de a sociedade cobrar. Um país que tem um governo e um Congresso desinteressados na educação não vai ter uma boa educação. A gente devia estar cobrando mais como o dinheiro vai ser gasto. Se não tem plano para educação média, quem tem que fazer é o Conselho de Secretários Estaduais. Mas os conselhos também não têm esse plano nacional. Claro que a gente tem que reclamar do governo federal, do Ministério da Educação e do Congresso, mas tem muita coisa que pode ser feita independentemente deles, e talvez a gente devesse estar fazendo isso em paralelo à reclamação.

Hoje há noção de quanto seria necessário para financiar, ou ainda precisa ser mapeado?

O Brasil já tá no topo da lista com 6% do PIB (de gasto). Pode ser que por alguns anos precise gastar 7%. E a evidência é que o Brasil gasta muito mal os 6% que ele gasta. Se gastar bem e eventualmente aumentar um pouquinho, provavelmente vai ter o dinheiro.

O argumento da desvinculação é dar mais flexibilidade para os parlamentares decidirem a alocação do Orçamento. Sem um plano e sem a garantia do mínimo, o argumento da flexibilidade é falacioso?

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Não entendo por que os parlamentares de hoje se julgam superiores aos de amanhã. Se ele deixa flexível, o parlamentar de amanhã vai decidir. O 25% vem desde 1988. Por que em 1988 os eleitos eram melhores que os atuais para julgar quanto deve ir para a educação?

Pode ser que seja mais ou menos?

Pode ser que seja mais ou menos. Há sempre uma desconfiança de que o cara antigo era legal e o pessoal atual não. Qualquer argumento nessa direção envolve uma superioridade moral ou de inteligência de uma geração em relação a outra.

 

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