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Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

Rio Grande de São Pedro

Há muito, os orçamentos não batem, há muito fazemos de conta que sim

Por Ana Carla Abrão
Atualização:

Na semana passada, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, apresentou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) à Assembleia Legislativa do seu Estado. O ato poderia ter passado em branco. Afinal, as peças orçamentárias estão em descrédito no Brasil, em particular as dos entes subnacionais. O governador poderia também ter apenas cumprido o rito e apresentado uma peça protocolar. Como de hábito, as metas fiscais partiriam de receitas superestimadas e despesas subestimadas para que, ao final, as contas (erradas) fechassem. A partir delas, não se governaria, apenas se administraria a crise. Há 12 anos que era assim no Rio Grande do Sul.

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Mas o governador decidiu fazer diferente. Ao tomar a acertada e corajosa decisão de mostrar a realidade fiscal de um Estado que já entra no seu quinto ano de colapso financeiro, reflexo de outros tantos anos de irresponsabilidade fiscal, ele decide enfrentar o problema e buscar soluções. O PLDO de 2020 chegou ao Legislativo apresentando números reais ao mostrar os déficits orçamentário e primário para 2019 e também para os três próximos anos. A insuficiência orçamentária atinge os R$ 4,4 bilhões este ano e se mantém nesse patamar em 2020, apesar da previsão de congelamento de despesas.

Os números nada mais fazem do que mostrar a realidade imposta por receitas e despesas cujas trajetórias desencontradas há muito aprofundam um desequilíbrio estrutural. Além disso, pela primeira vez, corrige-se os números dos gastos com pessoal, escancarando os inacreditáveis 77% de comprometimento da Receita Corrente Líquida (RCL) com a folha de pagamentos.

A princípio, a proposta de LDO gaúcha causa estranheza. O déficit orçamentário ignora a identidade entre receitas e despesas, que é a base da contabilidade e mostra um balanço desequilibrado que expõe com clareza a inviabilidade financeira do Estado. Ao expô-la, o jovem governador e sua equipe de técnicos colocam em números as consequências do abandono dos princípios e conceitos da responsabilidade fiscal e da boa gestão pública. O desequilíbrio que hoje desafia as regras básicas de contabilidade não surgiu do dia para noite. Ele foi forjado ao longo de anos em que, aí sim, o rigor, a acurácia e a transparência contábil foram ignorados, inclusive pelos Tribunais de Contas estaduais. Há muito, os orçamentos não batem, há muito fazemos de conta que sim. Chegou a hora de fazer essa discussão com a sociedade. É nas assembleias locais que os legítimos representantes da sociedade têm mandatos para essa difícil e necessária discussão.

Mas essa luta está longe de ser fácil. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) foi o primeiro a manifestar “contrariedade” com a peça orçamentária. Como sempre, alega-se o desrespeito à autonomia e à independência dos Poderes, argumento largamente utilizado na última década para poupá-los do necessário ajuste que há muito recai apenas nos Executivos locais.

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Esses mesmos Poderes, segundo estudo feito pelo Conselho de Secretários Estaduais de Planejamento (Coseplan) e já citado neste espaço, consumiram 21% das receitas líquidas do Estado do Rio Grande do Sul em 2015. Desse total, metade – ou o equivalente à 10,6% das receitas – foi gasta somente pelo TJRS, que ocupa a 9.ª maior participação nas receitas totais dentre os 26 tribunais de Justiça estaduais.

Infelizmente, o Rio Grande do Sul vive um déjà vu. Tivesse perdurado a gestão responsável da governadora Yeda Crusius, que entre 2008 e 2009 buscou o déficit zero e elaborou uma Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual com o objetivo de controlar os gastos públicos, a história gaúcha certamente seria outra. Não por coincidência, foi também ali que o então secretário de Fazenda Aod Cunha alertou, ao apresentar um orçamento deficitário, que a realidade apontava para o colapso que acabou por vir.

São Pedro é o santo padroeiro do Estado do Rio Grande do Sul. Foi em sua homenagem que o canal que liga as águas da Lagoa dos Patos ao oceano foi, por algum tempo, chamado de Rio São Pedro. Um equívoco topográfico que não eliminou, já no século 19, a vontade de cravar São Pedro no nome da Capitania e depois na Província de Rio Grande do Sul. Pedro é o santo das causas difíceis. Mas é nas lutas por causas difíceis que os líderes se destacam. Viva o Rio Grande do Sul.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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