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SARS atormentou a economia global, mas coronavírus é uma ameaça ainda maior

Empresas internacionais que dependem de fábricas chinesas para fabricar seus produtos e de consumidores chineses para as vendas já estão alertando para possíveis prejuízos

Por Peter S. Goodman
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Em 2002, quando um vírus letal que lembrava uma pneumonia, conhecido como SARS, surgiu na China, as fábricas do país produziam principalmente produtos de baixo custo, como camisetas e tênis para clientes de todo o mundo.

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Dezessete anos depois, outro vírus mortal está se espalhando rapidamente pelo país mais populoso do mundo. Mas a China transformou-se em um dos principais elementos da economia global, tornando a epidemia uma ameaça substancialmente mais potente às fortunas.

Empresas internacionais que dependem de fábricas chinesas para fabricar seus produtos e de consumidores chineses para as vendas já estão alertando para possíveis prejuízos.

Apple, Starbucks e Ikea fecharam temporariamente as lojas na China. Os shoppings estão desertos, ameaçando as vendas de tênis da Nike, roupas da Under Armour e de hambúrgueres do McDonald's. As fábricas que fazem carros para a General Motors e a Toyota estão atrasando a produção enquanto esperam que os trabalhadores retornem do feriado do Ano Novo Lunar, que foi prolongado pelo governo para impedir a propagação do vírus. As companhias aéreas internacionais, incluindo American, Delta, United, Lufthansa e British Airways, cancelaram voos para a China.

O crescimento econômico da China deve cair este ano para 5,6%, ante 6,1% no ano passado, de acordo com uma previsão cautelosa da Oxford Economics, baseada no efeito do vírus até agora. Isso, por sua vez, reduziria o crescimento econômico global do ano em 0,2%, para uma taxa anual de 2,3% - o ritmo mais lento desde a crise financeira global de uma década atrás.

Em um sinal de crescente preocupação, os líderes da China esboçaram, no domingo, planos para injetar novo crédito na economia quando as negociações recomeçarem na segunda-feira. Isso incluirá US$ 22 bilhões líquidos para reforçar os mercados monetários, bem como prazos mais flexíveis de empréstimos para as empresas chinesas. Os mercados de ações em todo o mundo despencaram nos últimos dias, conforme a percepção sustenta que uma crise de saúde pública pode se transformar em um choque econômico.

Embora as fábricas da China ainda produzam uma variedade alucinante de produtos relativamente simples e de baixo valor, como roupas e artigos de plástico, há muito tempo conquistam domínio em atividades mais avançadas e lucrativas, como smartphones, computadores e autopeças. O país tornou-se uma parte essencial da cadeia de suprimentos global, produzindo componentes necessários para fábricas do México à Malásia.

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A China também avançou como um enorme mercado consumidor, uma nação de 1,4 bilhão de pessoas com um apetite crescente por dispositivos eletrônicos, roupas de moda e viagens à Disneylândia.

A guerra comercial travada pelo governo Trump provocou uma dissociação parcial dos Estados Unidos e da China, as duas maiores economias do mundo. Empresas multinacionais que usavam fábricas na China para produzir seus produtos buscaram evitar tarifas americanas transferindo a produção para outros países - especialmente o Vietnã. O coronavírus pode acelerar essa tendência, pelo menos por um tempo, caso as empresas globais continuem fechadas na China.

Coronavírus já superou SARS em número de infectados na China, que transformou-se em um dos principais elementos da economia global nos últimos anos Foto: Alex Plavevski/ EFE

O aparecimento do vírus em Wuhan, uma cidade que abriga 11 milhões de pessoas, levou o governo chinês a efetivamente colocar em quarentena as metrópoles e grande parte da província de Hubei, impedindo as pessoas de se deslocarem.

Até agora, o efeito nas fábricas era limitado pelo fato de o surto se desenrolar durante o Ano Novo Lunar, o feriado mais importante do ano. Muitas empresas estão fechadas durante o feriado, enquanto centenas de milhões de trabalhadores migrantes retornam para a casa de suas famílias no campo.

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Em uma tentativa de manter as pessoas em casa e impedir a propagação do vírus, o governo estendeu o feriado até domingo, adicionando três dias. Mas o medo do vírus é tão amplo e intenso que é provável que muitos trabalhadores permaneçam longe das cidades industriais nesta semana.

Uma epidemia assustadora que coincide com um feriado importante quase certamente causará uma perda substancial de vendas para as indústrias de turismo e hospitalidade da China. Hotéis e restaurantes que normalmente estariam cheios devido às comemorações estão vazios. Concertos e eventos esportivos foram cancelados. A IMAX, a grande empresa de cinema sediada em Toronto, adiou o lançamento de cinco filmes que pretendia exibir na China durante o feriado.

Mesmo quando o feriado terminar oficialmente, é improvável que os negócios voltem ao normal. Muitas das principais áreas industriais - incluindo Xangai, Suzhou e a província de Guangdong - prolongaram o feriado em pelo menos mais uma semana, impedindo a volta dos trabalhadores.

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Com voos para a China limitados e restrições emergenciais de saúde pública, as operações chinesas de empresas multinacionais provavelmente serão reduzidas. Os principais bancos, incluindo o Goldman Sachs e o JPMorgan Chase, estão orientando que os funcionários que visitaram a China continental fiquem em casa por duas semanas.

A General Motors vendeu no ano passado mais carros na China do que nos Estados Unidos. Suas fábricas chinesas serão fechadas por pelo menos mais uma semana, a pedido do governo. A Ford Motor Co. disse aos gerentes da China para trabalharem em casa enquanto suas fábricas permanecem ociosas, disse um porta-voz da empresa.

Tudo isso pode causar estragos nas empresas que dependem da China para componentes, desde fábricas de automóveis no Centro-Oeste americano e México até fábricas de roupas em Bangladesh e na Turquia.

Se os clientes não puderem comprar o que precisam da China, as fábricas chinesas poderão, por sua vez, reduzir os pedidos de máquinas, componentes e matérias-primas importadas - chips de computador de Taiwan e da Coréia do Sul, cobre do Chile e do Canadá, equipamentos de fábrica da Alemanha e da Itália.

"Isso pode atrapalhar potencialmente as cadeias de suprimento globais", disse Rohini Malkani, economista da DBRS Morningstar, uma agência de classificação de crédito global. "É muito cedo para dizer quanto tempo vai durar."

A indústria de semicondutores dos Estados Unidos está particularmente consolidada na China, que é um importante centro de fabricação e um mercado para seus produtos. Os clientes da Intel na China representaram cerca de US$ 20 bilhões em receita em 2019, ou 28% de seu total durante o ano.

A Qualcomm, fabricante dominante de chips para celulares, é ainda mais dependente da China, atraindo 47% de sua receita anual - ou quase US$ 12 bilhões - em vendas no país.

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Ninguém sabe quanto tempo durará o surto de coronavírus. É impossível calcular até que ponto isso atrapalhará a economia da China. Mas a estatura formidável da China na economia mundial significa que o efeito do atual surto provavelmente excederá substancialmente o do SARS.

"Os efeitos indiretos da economia global serão muito maiores do que eram", disse Nicholas R. Lardy, especialista em China do Peterson Institute for International Economics, em Washington.

Para os fabricantes, o momento do surto talvez limite seus danos. Eles acabaram de concluir o quarto trimestre, quando a produção aumenta para atender à demanda das férias de inverno no hemisfério norte. O final de janeiro normalmente já tem um ritmo lento.

Mas os efeitos do vírus nas cadeias de suprimentos, que se tornaram notoriamente complexos, são difíceis de prever. Uma única parte de um produto avançado, como uma smart TV, pode ser composta por dezenas de peças menores, sendo que cada uma delas é montada a partir de outros componentes. As próprias empresas geralmente não conhecem os fornecedores das etapas que estão a três ou quatro degraus de distância na cadeia produtiva.

"Se você ficar sem widgets essenciais para os processos de produção e todos os widgets vierem da China, é bem possível que suas linhas de produção parem", disse Ben May, economista global da Oxford Economics em Londres. "É provável que esses problemas venham a surgir em todo o mundo".

A Apple monta a maioria de seus produtos na China. A empresa restringiu severamente as viagens à China para seus funcionários, disse seu diretor-executivo, Tim Cook, em uma teleconferência de resultados nesta terça-feira.

A Apple divulgou uma volatilidade muito maior em suas potenciais receitas para o trimestre atual diante das incertezas em torno da produção da fábrica e das vendas de seus produtos.

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Essas incertezas se aprofundaram no sábado. A Apple, que obtém cerca de um sexto de suas vendas da China, anunciou que fecharia suas 42 lojas no país.

O Walmart compra grandes volumes de seus produtos de fábricas chinesas e comanda 430 lojas no país, inclusive em áreas fechadas por quarentena. A empresa reduziu o horário em algumas lojas, disse uma porta-voz do Walmart.

"Ainda podemos estar nos estágios iniciais”, da crise pelo coronavírus escreveu Judith McKenna, que administra os negócios internacionais do Walmart, em um memorando interno na sexta-feira. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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