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Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

Será?

Os orçamentos públicos não resistiriam a um escrutínio contábil rigoroso

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Por Ana Carla Abrão
Atualização:

A crise fiscal de Estados e municípios e a necessidade de colocarmos de pé um amplo programa de ajuste estrutural dos entes subnacionais talvez sejam o tema mais frequente nas minhas, hoje, quase 150 colunas neste espaço. Permeados por algumas sugestões e outras tantas provocações, esses textos buscaram expor a realidade, além da urgência e relevância de enfrentarmos uma agenda de reformas que devolva a governadores e prefeitos a possibilidade de irem além de uma administração de crise e de escassez.

Neste final de ano, o tema volta mais uma vez à tona com o Projeto de Lei Complementar (PLP) 101/2020, de autoria do deputado Pedro Paulo e relatoria do deputado Mauro Benevides Filho. O PLP estabelece o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF), além de alterar regras fiscais ordinárias e extraordinárias como, por exemplo, as regidas pelas Leis Complementares 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), 156 (que tratou da renegociação das dívidas em 2016) e 159 (que institui o Regime de Recuperação Fiscal (RRF)

Projeto de Pedro Paulo quer ajudar no reequilíbrio fiscal de Estados e municípios. Foto: Pablo Valadares/ Câmara dos Deputados

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Os eixos principais do PLP são a harmonização e a transparência de regras contábeis, em particular as com despesa de pessoal, e a definição de critérios e exigências para que os entes subnacionais possam compatibilizar reequilíbrio fiscal com o pagamento das dívidas contraídas com a União. Redefinem-se alguns aspectos fundamentais do RFF, em particular o monitoramento e prazo de atendimento das ações de recuperação.

Aprovado o projeto, a revisão do cumprimento dos termos do regime passará a ser anual (ao invés dos três anos do modelo original), incorporando pagamentos anuais de parcelas crescentes de dívida. A exclusão do ente do regime de recuperação passa a ser a punição pelo não cumprimento, evitando repetir o caso do Rio de Janeiro, notabilizado pelo descumprimento impune do seu plano. Cria-se ainda um regime intermediário, o PEF. Apelidado de Plano Mansueto, em referência ao ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, o novo regime chega mais brando que o RRF, mas também exige algumas contrapartidas de ajuste. O PLP mexe-se ainda no teto de gastos, excluindo aumentos com educação e saúde que estejam vinculados a crescimento de receita. Melhor seria cortar outros gastos para compensar, possível por meio de uma reforma das carreiras dos servidores, mas a vinculação constitucional cria de fato desafios.

O eixo de transparência merece destaque. Afinal, qualquer número que se busque identificar no cipoal de regras contábeis desarmônicas ou na obscuridade de contas lançadas em linhas pouco naturais do balanço de contas traz sempre, como resultado, uma surpresa negativa, quando não inconsistente. Esses orçamentos não resistiriam a um escrutínio contábil rigoroso, a começar pelos conceitos adotados, por exemplo, para o lançamento de despesas de pessoal. Mas é no descompasso entre as trajetórias de receitas e despesas que reside o pior dos problemas e que faz saltar aos olhos o desequilíbrio que compromete a capacidade de provisão de serviços e impossibilita o aumento dos investimentos públicos.

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Mas o PLP 101 não deixa de ser um novo voto de confiança depois de alguns tiros n’água na tentativa de se buscar um ajuste mais profundo dos entes subnacionais. Ele reforça a constatação de que os entes continuam falidos, a despeito de algumas louváveis ações locais de ajuste, e tenta criar mecanismos de ajuste que não existem – ou se mostraram falhos.

De tudo, o mais importante no projeto são as contrapartidas impostas à adesão aos regimes de recuperação. Sem elas, tudo ficará, como nas vezes anteriores, perdido no meio de mais uma protelação. Sem elas, a qualidade dos serviços de saúde, educação e segurança continuará sendo a variável de ajuste para acomodar gastos crescentes com despesas de pessoal, financiar os privilégios de membros dos Poderes autônomos e garantir subsídios tributários a empresas que se acostumaram a trocar baixa eficiência por benefícios fiscais.

Por isso, ressurgem as mesmas questões que dominaram as discussões anteriores sobre Estados e municípios: será que as contrapartidas serão aprovadas ou apenas as medidas de alívio? Será que o Congresso Nacional entendeu que, sem um ajuste estrutural, ele continuará empurrando os entes subnacionais mais fundo nesse poço? Será que teremos uma lei de socorro que dê aos seus gestores locais os instrumentos para que ajustes estruturais sejam feitos? Será que o STF entenderá que as penalidades previstas nesta e em outras leis são formas de incentivar a adoção de medidas de ajuste em favor da população? Será que governadores e prefeitos adotarão essas medidas de forma responsável, ao invés de burlá-las sob as bênçãos das instituições locais e mirando apenas a próxima eleição?

A resposta a tantos “serás” começará a surgir no texto aprovado pelo plenário da Câmara de Deputados. Quiçá, seja sim.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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