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Serenidade sim, enganação não

Por Marco Antonio Rocha
Atualização:

Todo jornalista - depois de tempo suficiente na profissão - tem de se resignar, não sem uma boa dose de tédio - a assistir reprises. Reprises de fatos, de discussões, de velhos problemas não resolvidos, de atitudes e de comportamentos de autoridades. Temos agora uma reprise quase perfeita de atitudes e declarações que foram vistas, lidas e ouvidas nas semanas iniciais do governo do ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1978) - quando estourou a primeira crise do petróleo -, segundo as quais o Brasil era uma ilha de bonança num mar tormentoso. Pouco antes do final de 1973 os árabes suspenderam as exportações de petróleo para os EUA, em represália ao apoio americano a Israel, num dos inumeráveis embates daquela conturbada região. Em conseqüência, os preços do produto começavam uma escalada, cujo ápice, decorridos 34 anos, não parece ter sido atingido ainda. O então presidente americano, Richard Nixon, foi à televisão para falar da gravidade da situação que se criara e dali mesmo lançou um programa de economia e racionamento de combustíveis, ao qual o público aderiu em massa porque entendeu o perigo, embora Nixon já estivesse rolando escada abaixo nas pesquisas de popularidade por causa do escândalo de Watergate. No Brasil, para as autoridades da época, foi como se nada tivesse acontecido. Na opinião delas passaríamos incólumes pelos efeitos daquela que (depois se constatou) foi a maior perturbação econômica do século, e a alta dos preços do petróleo era episódica - assim que o embargo árabe fosse suspenso as coisas voltariam ao normal. Fundado nessa fantasiosa análise, transmitida ao público sob a forma de mantras apaziguadores, o governo lançou o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento e o País mergulhou num temerário programa de investimentos, para o qual não havia recursos, à custa de vultosos empréstimos internacionais, mas nem sequer pensou em acelerar as pesquisas para descoberta e exploração de petróleo. Não é preciso descrever os resultados daquela maneira folgazã de decidir estratégias para o País, pois os baixos níveis de crescimento do PIB perduram até hoje e são um testemunho eloqüente de como a incúria de uns afeta o futuro de todos. Também não é preciso lembrar que essa síndrome de professor Pangloss, com seus óculos cor-de-rosa, teve outros surtos graves. Em 1982 a ''''quebra'''' do México, em meio a uma assembléia do Fundo Monetário Internacional (FMI), que ocorria em Toronto, no Canadá, levou os bancos internacionais a um imediato fechamento dos seus guichês de empréstimos, mas aqui foi descartada como coisa pouco importante - o que nos levaria ao penoso episódio da moratória no governo Sarney e à prolongada renegociação da dívida externa. Mais tarde, a crise da Rússia, já no governo seguinte, daria início a um processo que desaguou em outra quebra do México e, afinal, na crise da Ásia, que transformaria o segundo mandato de FHC - que tinha tudo para ser o da retomada do crescimento - num triste jogo de retranca ante os bancos internacionais e numa romaria de visitas humilhantes das missões do FMI ao País. O fato é que um brasileirinho nascido por volta de 1970, e hoje com quase 40 anos de idade, praticamente só teve motivos de desânimo com um país que rola de crise em crise. Mas o papo das autoridades é sempre o mesmo: grandiloqüente, fanfarrão, vazio e imprevidente. O Brasil vai bem. O Brasil está fora da crise. O Brasil está ''''blindado''''. O Brasil está deitado ''''num colchão de US$ 160 bilhões de reservas'''', como disse agora o presidente Lula, achando que US$ 160 bilhões é proteção suficiente. (A China tem reservas de US$ 1 trilhão e está preocupada.) Reconheçamos que a previsibilidade é insumo muito escasso no campo das finanças internacionais e quem nelas se mete está num jogo de cabra-cega. Tanto que nenhuma das famosas agências ''''de risco'''' internacionais atentou, em tempo hábil, para o ''''risco'''' das crises anteriores e nem desta de agora. Estavam tão entretidas em medir o ''''risco Brasil'''', o ''''risco Índia'''', o ''''risco Argentina'''', etc., que o risco subprime americano lhes passou despercebido. Reconheçamos, também, que há alguma justificativa para que as autoridades não procedam de forma a alarmar o público, a afastar investidores ou a criar pânico desnecessário. Mas a política saudável de agir com prudência e serenidade não pode desaguar em desinformação, em informação mentirosa e em bravatas enganosas. Se há uma crise, se há riscos nessa crise, as pessoas têm o direito de poder tomar precauções, de procurar evitar os seus efeitos. Mas, para isso, precisam estar bem informadas de quais poderão ser esses efeitos - e não ser induzidas a pensar que o País é uma festa num mundo em padecimento. Essa política de fingir despreocupação e de displicência para com os fatos na verdade é de imprudência - do mesmo modo que, ao negar ou menosprezar uma epidemia de sarampo, a autoridade contribui para sua disseminação e não para sua contenção. O que combate e pode dissipar uma crise financeira é informação realista, não a contra-informação. Sim, concordemos que não dá para saber qual o desfecho, nem qual a extensão, no tempo, desta crise. Mas, por isso mesmo, é imperioso tomar precauções. A atividade econômica vai ser afetada, sim; o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo vai ser afetado, sim; o nível de emprego vai ser afetado, sim; a inflação vai subir, sem dúvida; e o crédito vai diminuir e ficar mais caro. Tudo isso vai ocorrer numa dosagem que será tanto maior quanto mais prolongada for a crise e com trauma tanto maior quanto mais despreparado estiver o público. A era do ''''ame-o ou deixe-o'''' e do ''''pra frente Brasil'''' já devia estar sepultada para sempre, e mais ainda por um governo do Partido dos Trabalhadores. *Marco Antonio Rocha é jornalista. E-mail: marcoantonio.rocha @grupoestado.com.br

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