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Sobra de R$ 1 bi para TV digital provoca disputa entre setor e governo

Operadoras querem fechar a empresa que administra os recursos, que ficariam com o Tesouro; mas o Ministério de Ciência e Tecnologia publicou portaria aumentando o rol de aplicação do dinheiro

Por Anne Warth
Atualização:

BRASÍLIA - Em uma situação incomum no setor público, o dinheiro reservado para pagar a migração da TV analógica para o sinal digital sobrou. De acordo com a Seja Digital, entidade criada para administrar os recursos e distribuir kits para garantir o acesso da população, há um saldo positivo de R$ 1 bilhão em caixa. O governo deve agora definir o que fazer com esse montante, que poderá ser aplicado em um projeto para bancar antenas com sinal digital em municípios pequenos e na expansão da banda larga no Norte do País.

O governo deve definir o que fazer com esse montante Foto: Dida Sampaio/Estadão

No leilão do 4G, realizado em 2014, as operadoras Claro, Vivo, TIM e Algar pagaram, juntas, R$ 6 bilhões em bônus de outorga para ter direito a usar a faixa de 700 MHz. Além desse valor, elas desembolsaram R$ 3,6 bilhões para limpar a frequência e realocar os radiodifusores que a ocupavam. Na época, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) determinou às empresas que criassem uma entidade para administrar esses recursos, a Seja Digital. Também conhecida como EAD, ela é composta pelas teles e tem atuação coordenada pela agência, mais especificamente pelo Grupo de Implantação do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV (Gired). Quase cinco anos depois, as teles consideram a missão cumprida, diz o presidente da EAD, Antonio Carlos Martelletto. Segundo ele, o sinal 4G já foi ativado em 3.410 municípios e a banda larga móvel já atinge 90% da população. "A faixa de 700 MHz está liberada em todo o Brasil", afirmou. Segundo Martelletto, a economia de recursos tem várias razões: sobra de 1,5 milhão de conversores, já que muitas pessoas cadastradas no Bolsa Família e com direito a retirá-los gratuitamente já tinham um televisor apto para o sinal digital; eficiência no gasto com remanejamento de canais, que ficou em um terço do inicialmente estimado; e a própria governança da EAD, que sempre foi enxuta. Para as teles, portanto, é hora de fechar a empresa. "O entendimento que se tem é de que a EAD deveria existir para cumprir as obrigações previstas no edital. Não está claro se obrigações adicionais devem ser executadas pela empresa. Isso está em discussão", diz. Não é o que pensa o governo. Em uma portaria publicada no dia 19 de novembro, assinada pelo secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Julio Semeghini, a pasta ampliou o rol de aplicação dos recursos e, consequentemente, as funções da empresa. Agora, além das famílias de baixa renda, que já tinham prioridade para receber o kit, o dinheiro servirá para dois fins: bancar antenas de sinal digital em municípios pequenos, que só contam com sinal analógico, e instalar redes de fibra ótica na região amazônica. Esses dois novos projetos ainda serão analisados pela área técnica da Anatel e, depois, submetidos ao Conselho Diretor da agência, disse o presidente do Gired, conselheiro Moisés Queiroz Moreira. Ele afirma que algumas tarefas da digitalização ainda estão em fase de conclusão, já que milhares de municípios que ainda passarão pelo desligamento do sinal analógico. O conselheiro reitera que "compete ao Gired definir o prazo de continuidade da operação da EAD". "O entendimento do Gired é o de que até junho de 2020 essas obrigações estejam concluídas, momento em que saberemos o valor do saldo de recursos remanescente, sendo que a sua utilização está sob avaliação pelo grupo", diz. "O interesse público perseguido é o de que todos tenham acesso ao sinal digital de televisão. Entretanto, existem milhares de municípios que ainda passarão pelo desligamento do sinal analógico. E as pesquisas do IBGE quanto ao nível de digitalização do Brasil, no ano de 2018, nortearão futuras tomadas de decisão." Em linha oposta, o ex-presidente do Gired e ex-presidente da Anatel, Juarez Quadros, avalia que a portaria do MCTIC não poderia ter ampliado a aplicação dos recursos da EAD nem incluído outros projetos na lista de atribuições da empresa. Atual diretor do setor de telecomunicações da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), ele avalia que essa sobra de recursos, se houver, pertence ao Tesouro Nacional. "Não acho prudente fazer isso por portaria. Certamente quem pagou os recursos pode vir a questionar, até judicialmente", afirmou Quadros, em referência às teles. Para ele, o instrumento ideal para esse fim seria um decreto. Quadros também levanta dúvidas sobre o uso das redes que vão conectar cidades do Norte do País à banda larga. "Quando o dinheiro se trata de recurso público, sua aplicação é diferente. Quem vai poder acessar essas redes? Só quem pagou por elas?", questionou. Para o setor de radiodifusão, o dinheiro será bem-vindo. O diretor de Tecnologia da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e TV (Abert), Luiz Carlos Abrahão, afirma que cerca de 1,7 mil municípios brasileiros com menos de 50 mil habitantes podem ser contemplados com o sinal digital até 2023 a partir da portaria publicada pelo MCTIC. Segundo ele, são municípios que não apresentam viabilidade econômica para a migração, normalmente atendidos por torres, antenas e transmissores das próprias prefeituras ou de associações locais. A estimativa da Abert é que o projeto custaria R$ 700 milhões, incluindo a distribuição de kits para a população de baixa renda. Já o projeto de fibra ótica na Região Norte, embora seja de interesse das teles, foi apresentado pelo próprio governo federal. A intenção foi retomar a prioridade a projetos de banda larga - função que havia sido retirada da lista de funções da EAD por meio de uma portaria publicada no fim do ano passado. Segundo o secretário de Telecomunicações do MCTIC, Vitor Menezes, a ideia é construir novas redes no Norte do País e reforçá-las onde é preciso redundância. O custo desse projeto, segundo ele, está estimado em R$ 300 milhões. "A maneira como esses recursos serão executados é uma decisão do Gired. Nós demos a direção da política pública e habilitamos um projeto", afirmou. O Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil), que representa as teles que participaram do leilão 4G, não se posicionou a respeito do uso dos recursos do saldo remanescente da EAD.

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