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Sobrevivendo, com uma pequena ajuda dos amigos

Na crise, os laços de solidariedade ficam mais evidentes: ajuda vem da família e também dos vizinhos

Foto do author Fernando Scheller
Por Fernando Scheller
Atualização:

Orlanita dos Santos foi, mais de uma vez, socorrida pela caridade de estranhos. A solidariedade, ela descobriu, vai além dos laços de sangue. Uma amiga de longa data propôs sociedade em um brechó – só para simplesmente doar-lhe o negócio ao perceber que a renda seria insuficiente para uma divisão. As vizinhas do distrito de Cangaíba, zona leste de São Paulo, constantemente se compadecem de seu desespero: os R$ 10 para a quitanda são trocados por uma pilha de roupas passadas, os R$ 20 para completar o botijão de gás viram uma limpeza rápida. Até a cadela Jade, que apareceu e foi ficando, ganhou uma madrinha para a ração e o banho. Todos ao redor de Orlanita, de certa forma, revivem com ela o momento em que sua história de prosperidade se transformaria em um revés do qual jamais se recuperaria. Até porque sempre que ela lembra o dia – 12 de março, faz questão de frisar –, não consegue conter as lágrimas, mesmo tantos anos mais tarde.

Orlanita Barbosa dos Santosem brechóque ganhou da amiga na zona leste de Sao Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Orlanita nasceu em Jacobina, no sertão da Bahia, e desde que se lembra sonhava seguir os passos da irmã, que já morava em São Paulo. A oportunidade surgiu em 1981. A futura patroa enviou-lhe o dinheiro. Trabalhou de graça cinco meses para pagar a dívida. Passou por casas de família, pegou no pesado como soldadora e, finalmente, trabalhou 17 anos no restaurante da fabricante de eletrônicos Philco. No fim dos anos 90, quando o serviço foi terceirizado, deixou a empresa. Estava rica, nunca tinha visto tanto dinheiro junto: R$ 12 mil. Confiante no próprio talento – “sempre tive o dom da venda”, diz ela –, decidiu investir em si mesma. Foi à rua do ouro, no centro de São Paulo, e comprou um mostruário cheio de anéis, pulseiras e brincos. Tudo ia muito bem. Em questão de meses, tinha R$ 25 mil – tudo reinvestido em mercadoria. Um dia, antes de voltar para casa, resolveu passar na padaria. Precisava de um café. Havia sido seguida. Em poucos segundos, os ladrões levaram tudo. Fim de tarde do maldito 12 de março de 1999. 

Então com 40 anos, Orlanita se viu sem nada. A confiança deu lugar à depressão. Só não desistiu de vez porque descobriu que estava grávida. Foi mãe aos 41 anos. A preocupação constante com as dívidas acabou com o casamento, o trabalho pesado no restaurante rendeu-lhe hérnias de disco e corroeu-lhe os ossos do quadril – está na fila do SUS por uma prótese há oito anos. Mesmo com dores constantes, trabalha duas vezes por semana na casa de uma família para pagar R$ 800 do aluguel. Recebe R$ 112 de Bolsa Família e o que ganha com o brechó vira comida. Na quinta-feira em que recebeu a reportagem do Estado, havia dado sorte: faturara o suficiente para encher uma sacola de frutas e verduras e uma bandeja de ovos. Não precisaria, pelo menos por um dia, recorrer à compaixão de conhecidos.

Contas. “Confia em mim.” Era tudo o que Patricia Limeira, Pati Biba para os amigos, podia dizer ao dono do mercadinho próximo à sua casa, no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo. Não tinha como prometer que pagaria na próxima semana ou no mês que vem. Meses se passaram sem que Pati fechasse um único show. A produtora musical que antes conseguia cobrar R$ 12 mil para uma apresentação de um conjunto de samba – recebendo 20% de comissão –, agora em sequer fechava um evento em troca da bilheteria. As contas se avolumaram. Percorria a cidade atrás de casas noturnas interessadas em seus shows com o dinheiro contado para o ônibus – R$ 7 para ir e voltar. “Saía de manhã e só comia à noite, em casa.” 

Patricia Lucena, produtora cultural, mora com ospais e a filha na zona sul de Sao Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Nos bons tempos, três ou quatro anos atrás, Pati chegava a tirar R$ 6 mil por mês. Em vez de contar o dinheiro da condução, circulava de carro. Comprava calça de marca no shopping e não se preocupava em negociar a conta do mercado. Não precisava depender da ajuda dos pais, Jorge e Ruth, proprietários da casa onde mora. “Acho que esse tempo bom não volta mais”, conforma-se. A venda do carro e pequenos shows que finalmente conseguiu fechar ainda não foram suficientes para as contas ficarem totalmente em dia. Pati sentiu na pele que, na crise, o gasto com diversão é cortado. “As pessoas não estão mais investindo em lazer. A casa que antes cobrava R$ 50 de entrada agora cobra R$ 15. E eu dependo dessa bilheteria.”

Escolhas. Quando pensa no futuro, Pati olha para a filha, Kenya – o nome foi escolhido em homenagem ao país africano. Aos 17 anos, frequenta o cursinho pré-vestibular do Educafro, voltado a afrodescendentes. Embora Kenya tenha pretensões artísticas, a mãe tem outros planos. “Seja médica, é o que digo”, diz Pati, ignorando o fato que, se a filha não for aprovada em uma universidade pública, a mensalidade do curso pode passar de R$ 5 mil. Além de pensar na educação de Kenya, terá uma nova conta em breve: Pati estuda produção cultural na FMU com ajuda do Fies, programa de financiamento do governo. Após se formar, terá prestações a pagar. “Não posso pensar nisso agora.” 

Na zona leste, a filha de Orlanita, Júlia, de 15 anos, começou a trabalhar como babá. Mas a exigência da patroa ficou muito superior ao inicialmente combinado. O trabalho começou a atrapalhar os estudos. Orlanita decidiu que pode aguentar mais uns anos de dores nas costas e de malabarismo financeiro diário para ver a filha formada e falando uma língua estrangeira – a menina é boa de espanhol. Para o futuro de Júlia, Orlanita não consegue pensar em uma profissão específica. Não sabe o que dizer, as lágrimas lhe escorrem pelo rosto. “Só quero algo melhor. Só algo melhor.”

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