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Sucessão de atritos selou decisão do governo de pedir a saída do FMI do Brasil

Gota d’água foi a escolha de economista crítico ao governo para posto em Washington; representação deixa País em julho de 2022

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Por Adriana Fernandes
Atualização:

BRASÍLIA - A decisão unilateral do governo Bolsonaro de pedir o fechamento do escritório de representação do Fundo Monetário Internacional (FMI) no Brasil expôs um processo de acúmulo de desentendimentos na relação do País com o organismo multilateral comandado pela economista búlgara Kristalina Georgieva.

Após a revelação pelo Estadão, na semana passada, de que o escritório em Brasília seria fechado a partir de julho de 2022, a reportagem apurou os principais motivos que ampliaram o desgaste e levaram o Ministério da Economia a encaminhar ofício, em 9 de dezembro, a Kristalina, comunicando que não seria mais necessária a representação.

Ilan Goldfajn;ex-presidente do Banco Central, Goldfajntem sido um crítico contumaz da política econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes Foto: Ueslei Marcelino/Reuters - 22/1/2019

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A gota d’água foi a decisão do FMI de escolher um novo economista que será responsável, em Washington, a partir de janeiro, pela missão do Fundo junto ao Brasil, sem levar em conta ponderações em contrário após consulta ao governo.

A escolha do chefe da missão é prerrogativa do FMI, mas a consulta ao País tem sido praxe na relação bilateral. A postura da direção do Fundo foi considerada pelo Brasil como mais um sinal de descaso e de tratamento diferenciado em relação a outros países – inclusive, com a Argentina de Alberto Fernández, que já disse que não iria se “ajoelhar diante do FMI” e ameaçou não pagar a dívida, embora até hoje tenha cumprido com as obrigações. 

O economista indicado será chefiado pelo ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, que também tem sido um crítico contumaz da política econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes. 

A queda de braço com o FMI começou em 2020, com a previsão do Fundo de recuo de 9,1% do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro ano da pandemia, valor muito abaixo das estimativas com as quais o governo e o mercado trabalhavam. A estimativa inicial era ainda pior, de 9,6%, e nem chegou a ser divulgada.

As projeções mais pessimistas foram divulgadas mesmo após as medidas de estímulo fiscal e monetário de combate aos efeitos do lockdown (confinamento) provocados na atividade econômica pela covid-19. Na época, o FMI não quis rever seu número, alegando que mais à frente o mercado se alinharia a estimativas mais próximas das dele. As medidas tiveram um impacto importante no PIB, e o Fundo acabou errando muito nas projeções. A economia do Brasil registrou uma recessão de 3,9%.

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 Somam-se a esse primeiro grande embate mais duas pressões do FMI, no início do segundo semestre, para que o governo aumentasse os gastos do Orçamento de 2021 fora do teto de gastos (a regra presente na Constituição que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação) e também continuasse com a redução dos juros básicos. Naquele momento, o BC já tinha interrompido o processo de corte da Selic – depois de a taxa básica de juros ter atingido a mínima histórica de 2% em agosto do ano passado.

A recomendação para fazer um orçamento com mais gastos acima do teto ficou de fora do relatório sobre o Brasil, mas permaneceu no documento a defesa de que o BC continuasse com o corte de juros num momento em que já apareciam pressões (ainda que localizadas) de alta de preços. Segundo fontes, travou-se uma “guerra” com o FMI naquele momento, porque o governo alegava que precisava ancorar as expectativas da política fiscal.

Um impasse sobre a inclusão de tema relacionado à contribuição do Brasil para o esforço global de combate às mudanças climáticas no relatório anual de 2021 também azedou a relação. O tema é de cobertura voluntária nos relatórios bilaterais, e encorajada para ser coberta a cada três anos pelas 20 maiores economias. Nesse caso, havia um acordo prévio das autoridades brasileiras com a equipe do organismo para que o tema não fosse abordado no relatório de 2021.

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Sem ser resolvido nos quadros mais técnicos, o problema acabou sendo levado para a diretora-geral do Fundo. Ajustes foram feitos no texto dos parágrafos que tratavam do tema. Em ofício à diretora, enviado pelo representante brasileiro Afonso Bevilaqua, o Brasil alegou que o documento fazia menção ao tema que estava fora do que havia sido discutido na missão do Brasil.

'Politização'

 O desgaste dos últimos tempos só acelerou o processo. O ambiente de tensão ficou claro depois que Guedes, na semana passada, mandou o FMI ir embora, alegando que o fundo poderia “fazer as previsões deles em outro lugar”. “Só não foi embora porque talvez gostem do futebol, da feijoada e de bom papo.” Ele vê politização do FMI. A interlocutores, o ministro conta que a decisão foi amadurecida e que a equipe vinha debatendo até “quando iria tolerar as desatenções do FMI”. Há também um desconforto no Ministério da Economia e no BC de Roberto Campos Neto com os posicionamentos públicos de Ilan depois que foi nomeado. Guedes e o futuro diretor do FMI conversaram esta semana sobre o assunto.

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Procurado, Ilan não se manifestou. O Ministério da Economia informou que não fará moção de desagravo ao FMI. Mas confirmou que o País “envidou” esforços para calibrar as previsões pessimistas de alguns organismos internacionais sobre o desempenho da economia brasileira nos últimos dois anos. 

Diálogo

Segundo a atual representante do FMI no Brasil, Joana Pereira, as projeções e avaliações do organismo são preparadas de forma independente e globalmente consistente, ainda que levando em consideração as circunstâncias individuais de cada país.

“Formulamos as nossas avaliações através de deliberação cuidadosa, considerando as informações coletadas em nossas discussões com as autoridades, outros países membros e outros intervenientes relevantes, como o setor privado, a academia e a sociedade civil. Vemos esse processo como saudável e útil para tentar discernir o melhor aconselhamento possível sobre política econômica”, escreveu ela, em resposta ao Estadão.

Joana acrescentou que o FMI concordou com as autoridades brasileiras em fechar seu escritório até 30 de junho de 2022. “Como em muitos outros países membros, o escritório foi aberto durante um acordo de assistência financeira do FMI, em 1999; esse era seu propósito inicial. Embora o acordo do FMI com o Brasil tenha terminado em 2005, o escritório foi mantido para facilitar o diálogo entre o corpo técnico do Fundo e as autoridades.” Joana disse que o FMI está pronto para continuar trabalhando em estreita colaboração com as autoridades brasileiras para apoiar o Brasil no fortalecimento de sua política econômica e arcabouço institucional. 

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