Tecnologia e juros mais baixos dão nova cara ao mercado financeiro

Com a Selic em um dígito, obrigando o investidor a ir além dos títulos públicos, e o avanço das plataformas de investimentos, uma nova leva de empreendedores tem ajudado a mudar a forma de se aplicar recursos no País

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Por Cristiane Barbieri
4 min de leitura

Na última década, o número de fundos de investimento cresceu 75% no País. A alta, porém, não veio dos grandes bancos e financeiras, que ainda concentram 90% das aplicações dos brasileiros. Executivos da elite do mercado financeiro, que ficaram sem espaço na área ou enxergaram a oportunidade, têm criado gestoras e ficado à frente de um novo mercado de trabalho. Ele só se tornou possível graças à combinação de evolução tecnológica com os menores juros básicos da história. De um lado, tornou-se mais difícil para o investidor conseguir a rentabilidade com a qual estava acostumado há até poucos anos, colocando dinheiro em aplicações como na poupança, fundos DI ou títulos do governo. Isso porque os papéis públicos são remunerados pelas taxas básicas de juros (Selic), que estão na casa de um dígito desde julho de 2017. De outro lado, plataformas de investimento – como XP, Órama, BTG Digital, Modalmais, Genial, entre outras – tornaram possível que pessoas com menor capacidade de poupança tivessem acesso a fundos mais rentáveis.

O evento Expert XP, voltado para investidores, teve mais de 10 mil participantes no ano passado Foto: Maicon Machado

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"Até poucos anos atrás, investir em fundos de gestoras era uma opção restrita a ricos e milionários", diz André Salgado, sócio da gestora Adam Capital. É uma fala unânime entre gestores e especialistas. Isso porque, até poucos anos atrás, as captações eram restritas a family offices (os escritórios que cuidam de fortunas familiares), a pessoas de altíssima renda atendidos por áreas específicas de bancos ou a clientes institucionais. Para os pequenos, restavam apenas os grandes bancos que, acomodados, chegavam a cobrar 4% do cliente sobre fundos compostos, muitas vezes, por papéis do governo ou do próprio banco. Com o aumento da base de clientes, surgiu um novo campo de trabalho para esses profissionais, treinados por anos nas operações mais sofisticadas do mercado financeiro. A transformação aconteceu em um momento crítico. Alguns haviam se tornado profissionais caros em bancos e corretoras, que enxugaram estruturas durante a crise. Outros enxergaram oportunidade de atender aos investidores emergentes. Em comum, todos carregavam consigo o patrimônio financeiro e contatos acumulados ao longo dos anos.

“As profissões vão se adequando à demanda de mercado e à mudança de tecnologia”, diz Michael Viriato, coordenador do laboratório de finanças do Insper. “Mas com o País convergindo já há alguns anos para um cenário de juros mais baixos, o que fez diferença foi a demanda do investidor, que, para ganhar um pouco mais, passou a precisar de ajuda profissional.”

É o cenário que muitos gestores relatam ter visto há décadas nos EUA, onde vários trabalharam e estudaram. Com muitas alternativas de investimento, a figura do consultor de investimentos e do assessor financeiro são comuns por lá – o difícil, inclusive, são os clientes optarem pelas ofertas dos bancos.

Por aqui, porém, as plataformas perceberam duas carências principais a serem supridas. Uma era o número restrito de fundos em suas prateleiras. Havia poucos produtos e diversidade a serem oferecidos aos clientes, caso o mercado ganhasse escala de verdade. Outra, era a falta de educação financeira e do hábito de investir ativamente dos consumidores, acostumados a deixar o dinheiro no fundo de melhor rentabilidade dos bancos que conseguissem acessar.

Pioneira e líder em participação de mercado entre as plataformas, a XP estimula ativamente a criação de fundos e gestoras. “A empresa foi se transformando ao longo do tempo e teve uma grande sacada de trazer fundos para a plataforma. Nenhuma corretora fazia isso”, diz Samuel Oliveira, chefe da área de análise de fundos da XP Investimentos. “É nossa espinha dorsal.” Hoje, dos R$ 250 bilhões sob custódia na XP, mais de R$ 80 bilhões são referentes a fundos.

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“Foi um movimento de incentivar e dar a mão para profissionais criarem novas gestoras”, diz Oliveira. “Eles tinham a experiência de bancos, networking, histórico de ganhar dinheiro e começamos a ‘provocá-los’, falando sobre a escassez de bons produtos e a quantidade de dinheiro parado, atrás de oportunidades.”

O processo implantado pela plataforma vai da identificação de talentos, até ajudá-los no percurso para a montagem da gestora, apresentando-os para profissionais e especialistas. “Não ganhamos nada com isso”, diz Oliveira. Na verdade, o lucro da XP acontece depois, já que o fundo repassa para a plataforma uma parte do que foi aplicado pelo investidor. É o chamado rebate.

O mesmo esforço foi feito na parte de renda fixa, buscando ativamente que empresas lançassem dívidas para se financiar, por exemplo, para levar os papéis ao mercado.

Foi assim que produtos até então inéditos, como fundos internacionais, de debêntures incentivadas, impacto social e criptomoedas, entre outros, chegaram aos investidores.

Ao mesmo tempo, os agentes autônomos, profissionais que fazem a ponta entre os fundos e os investidores (que têm outros jeitos de aplicar seus recursos nas plataformas eletrônicas), foram ganhando espaço e criando outro mercado. A Expert XP, por exemplo, se tornou o maior evento de investimentos do mundo, segundo a plataforma, e deve reunir 30 mil interessados em julho, em São Paulo. O primeiro dia é voltado a esse profissional e os outros dois dias são abertos ao público geral. “É um sistema (de relacionamento com os agentes autônomos) que estamos construindo há anos”, diz Caio Peres, sócio e responsável pela área de expansão da XP Investimentos. “Grande parte dos interessados foram clientes ou vieram do próprio mercado financeiro.”

Tamanho crescimento tem levantado preocupação das entidades do setor. “Vivemos um ciclo virtuoso, com aumento de concorrência, informação e transparência”, diz Carlos André, vice-presidente da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). “No momento, estamos tentando entender o que fazer, do ponto de vista da autorregulação, para garantir que esse crescimento se dê de forma saudável e sustentável.” Com a multiplicação da oferta, também surgiu o desafio de ajudar o consumidor a escolher. Com 504 mil clientes ativos, dos quais 75% com menos de 35 anos de idade, a plataforma Modalmais teve de aprender a conversar com esse público, que pode escolher entre 257 fundos de 125 gestoras. “Nossa experiência tem mostrado que esse investidor toma a decisão por si mesmo e investe bastante tempo para entender suas opções”, diz Ronaldo Guimarães, sócio do Modalmais. Só no canal no Youtube, a marca tem 180 mil inscritos. Algumas transmissões ao vivo chegam a ter 2 mil visualizações simultâneas.

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