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Tem boi na linha e no anzol

A Bíblia conta sobre a multiplicação dos pães e dos peixes. Na Galileia, Jesus pregava para uma multidão quando anoiteceu e se aproximou o horário do jantar. Diante da preocupação dos seus discípulos, Jesus chamou um menino que tinha à mão um cesto com cinco pães e dois peixes e orientou seus apóstolos a distribuir esses alimentos. O milagre permitiu que mais de 5 mil pessoas fossem alimentadas. No Brasil, a multiplicação das últimas décadas não foi a dos pães ou a dos peixes, mas, sim, a dos pescadores, por meio do seguro-defeso, existente desde 1991. Para preservar espécies, o governo paga um salário mínimo aos pescadores artesanais por tantos meses quanto dure a reprodução, em áreas definidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Normalmente, o benefício é pago por quatro meses. Aos interessados basta comprovar o exercício profissional da pesca, a inscrição no INSS e que não tenham outro emprego, bem como qualquer outra fonte de renda. Seja pela consciência ambiental, seja pela renda fixa e fácil, o número de beneficiados cresceu exponencialmente. Em 2002, eram 91.744 os favorecidos. Em 2011 já eram mais de meio milhão. Há dois anos, exatamente 647.670 pessoas já afirmavam viver tão somente da pesca, individual ou em regime de economia familiar, fato que lhes assegurava o direito de receber o valor de um salário mínimo mensal, durante o período de defeso. Os gastos do governo, obviamente, cresceram na mesma proporção. Em 2002, o Ministério do Trabalho pagou R$ 60,2 milhões a título de seguro-desemprego aos pequenos pescadores. Em 2012, os pagamentos chegaram a R$ 1,9 bilhão. Neste ano, a dotação do Orçamento-Geral da União é de aproximadamente R$ 2 bilhões. O montante corresponde ao triplo dos R$ 630 milhões orçados em 2013 para o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). O valor bilionário pago com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador é também quatro vezes maior do que as exportações brasileiras de pescado em 2012, que geraram cerca de R$ 500 milhões. Os números são tão estranhos que parecem "história de pescador". Nos dois últimos anos, os Estados do Pará, Maranhão e Bahia lideraram os recebimentos do seguro-defeso, tendo São Paulo ficado em 15.º lugar, pouco à frente do Rio de Janeiro, na 17.ª colocação. Enquanto no Pará os pagamentos atingiram R$ 905 milhões, em São Paulo somaram R$ 63,8 milhões. O município paulista campeão foi Iguape, onde os pescadores receberam R$ 7,3 milhões, mais do que o dobro dos R$ 2,6 milhões desembolsados por cidade em favor dos que vivem da pesca em Panorama e Presidente Epitácio. No Guarujá, o 4.º colocado, foram pagos R$ 2,5 milhões. Conforme cadastro da Controladoria-Geral da União (CGU), até em Brasília existem cinco pessoas que receberam juntas R$ 11.784,00 em razão do bolsa-pesca. Alguns fatos explicam o crescimento vertiginoso das despesas. O benefício estar atrelado ao salário mínimo - com evolução real significativa - é uma delas. Merecem também destaque as disposições legais que reduziram o tempo exigido de registro como pescador artesanal para a obtenção do benefício e dispensaram a obrigatoriedade da inscrição em colônias de pescadores. Paralelamente, o número de inscritos no Registro Geral da Atividade Pesqueira cresceu de forma alucinante. Em 2003, o cadastro tinha pouco mais de 85 mil inscritos e, em 2012, o número superou 1 milhão de inscrições. Em menos de dez anos, a variação da quantidade de registros atingiu 1.125%. É claro que tem boi na linha e no anzol. As fraudes surgem como um tsunami. Em 2011, a própria CGU já havia constatado 60,7 mil pagamentos irregulares, cuja soma alcançava R$ 91,8 milhões. Em 2012, a Advocacia-Geral da União no Ceará apurou que existiam pescadores cadastrados em colônias que nem sequer residiam nas respectivas cidades e não tinham a pesca como atividade principal. Em Santa Catarina, no município de Tubarão, espertalhões que atuavam em outras atividades e nunca viram um peixe na vida se inscreviam nas associações de classe, pagavam anuidades, contavam tempo de serviço e se aposentavam. O procurador da República Celso Três processou mais de 300 pessoas por fraudes, e ainda assim disse: "É como secar um oceano". Aliás, o Ministério Público (MP) já abriu ações penais no Amazonas, Maranhão e em vários outros Estados. No mês passado, investigações da Polícia Federal (PF) em Minas Gerais identificaram que fazendeiros, políticos, comerciantes e até um pastor dono de clínica de reabilitação em Belo Horizonte recebiam a bolsa. Os inquéritos devem se transformar em processos por estelionato. Como o que está ruim sempre pode piorar, há vários projetos de lei no Congresso Nacional que pretendem ampliar o benefício. Dentre eles, por exemplo, os que tratam de estender o seguro-defeso aos pesqueiros impedidos de exercer a atividade por causa das condições climáticas e, ainda, a toda a cadeia da pesca, incluindo os que transportam, comercializam, reparam embarcações e costuram redes. Outras propostas cogitam beneficiar os catadores de mariscos, caranguejos, siris e guaiamuns. A ideia mais curiosa é a que concede a bolsa-pesca mesmo àqueles já contemplados pelo auxílio-doença. Há cerca de 20 dias, o Tribunal de Contas da União divulgou acórdão analisando os fatores que contribuíram para o incremento das despesas e anunciou auditoria no MPA para avaliar a eficácia dos controles internos referentes à concessão do benefício. Ao contrário da passagem bíblica, fato que a religiosidade explica, é extremamente necessário que os órgãos de controle, a PF, o MP e a própria Justiça investiguem, de forma sistêmica, as fraudes generalizadas relacionadas à multiplicação dos pescadores, que exalam politicagem e má-fé.

Por Gil Castello Branco
Atualização:

* Gil Castello Branco é economista e fundador da ONG Associação Contas Abertas. E-mail: gil@contasabertas.org.br.

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