PUBLICIDADE

''Tem um furacão se armando lá fora. E o Brasil não está a salvo''

Foto do author Márcia De Chiara
Por Márcia De Chiara
Atualização:

O jornalista Alberto Tamer, que completou ontem meio século de jornalismo econômico no Estado e seguiu de perto os altos e baixos da economia mundial, está cético em relação aos impactos da desaceleração dos Estados Unidos no País. "Tem um furacão se armando lá fora. O Brasil vai se sair bem se estiver preparado e acabar com essa palhaçada, essa bobagem de achar que o País está a salvo." Autodidata "em tudo" como ele se define, Tamer nunca freqüentou curso superior de jornalismo ou economia, mas presenciou o que ele diz ter sido uma mudança "super ultra radical" da economia brasileira nos últimos 50 anos. Como repórter, editorialista, correspondente internacional e há 14 anos colunista, ele acompanhou a economia brasileira em diversos períodos: da fase em que tudo girava em torno do café, passando pela industrialização da era JK, o período da hiperinflação, as tentativas frustradas de vários planos de estabilização até o sucesso do Plano Real. Aos 76 anos, o filho de libanês que por acaso virou jornalista de economia, mantém o entusiasmo de um jovem repórter. Ele planeja voltar à Amazônia para completar uma reportagem especial feita há 40 anos e que se transformou num livro. A seguir, trechos da entrevista. O sr. acha que o País sairá bem das turbulências internacionais? Tem tudo para se sair bem, desde que adote com urgência uma política consciente de que essa situação é difícil e delicada e, acima de tudo, imprevisível. Tem um furacão se armando lá fora. E o Brasil vai se sair bem se estiver preparado e acabar com essa palhaçada, essa bobagem de dizer que está a salvo. Vamos ser afetados pela crise porque, se a situação se agravar lá fora, o pessoal vai embora para cobrir perdas no exterior. A estimativa é de perdas de US$ 600 bilhões, alguns falam em US$ 1 trilhão. Por enquanto, estamos bem na parte do mercado financeiro porque temos um mercado de capitais sólido, tivemos uma política certa de reservas. Mas essa política de reservas não se sustenta se passarmos a ter déficits comerciais. O Brasil tem de cuidar primeiro do problema do mercado externo, que acaba puxando o consumo e aí temos o desafio da inflação. O Banco Central vai aumentar os juros se o ritmo de crescimento da demanda interna for mantido. A forma de estimular as exportações seria fazer com que os juros baixassem e o real se desvalorizasse. O câmbio e os juros estão segurando as exportações. Além disso, temos um mercado externo importador se reduzindo. Há três fatores negativos: juro alto, câmbio valorizado e mercado externo desacelerando. É verdade que as exportações respondem por 12% do PIB, mas elas têm um efeito multiplicador muito grande no emprego. O que o governo precisa é fazer uma política na qual consiga reduzir os juros e deixe de atrair dinheiro especulativo. O dólar cai e fica mais fácil exportar. É preciso uma política exportadora porque nós estamos muito baseados no mercado interno. O mercado externo tem várias vantagens. Quando o país exporta, gera emprego, conquista novo mercado e atrai dólar que será investido na produção para exportar mais. A exportação gera, de um lado, consumo e, de outro, cambiais saudáveis - divisas que não são para comprar ações ou títulos do governo. Como o sr. vê a economia hoje? Está surpreendentemente bem. O Lula e a equipe econômica estão acertando porque não estão inventando nada. Ele está sendo inteligente, está deixando a economia ir, defendendo o empresário, o banqueiro. O que faltava, o Lula está conseguindo: criar condições para atrair os investimentos externos. A grande falha dele é não intensificar a abertura da economia e as privatizações da infra-estrutura. Abre tudo: estradas, portos, correio, energia, cadeias, aeroportos. Depois é só controlar. Esse é um erro que vai dificultar a sustentação do crescimento atual. Para crescer 4,5% ao ano é preciso de 4.500 megawatts por ano, ou seja, quase a capacidade de geração de energia de duas usinas do Rio Madeira. Madeira só vai entrar em operação em 2013. Não dá para dar conta dessa demanda com a energia gerada pelas térmicas. Outro erro é a demora para formular uma política industrial exportadora. O País precisa se transformar num grande pólo exportador. O que mudou na economia brasileira nesses 50 anos? Nesse período houve uma mudança super ultra radical. No começo, nós éramos só agricultura, não tínhamos sistema financeiro. Isso foi criado pelo Roberto Campos e pelo Octavio Gouvêa de Bulhões (respectivamente, ex-ministro do Planejamento e da Fazenda do governo Castello Branco). A Bolsa era incipiente. Toda a economia brasileira estava voltada para a agricultura e, na agricultura, o café. As minhas reportagens eram todas sobre a agricultura. Depois, começou uma certa evolução com o Juscelino Kubitschek, com a industrialização. A mudança foi lenta no início, acelerou-se depois do JK e parou por causa da inflação. Eu acompanhei tudo. Entrevistei todos os ministros da Fazenda. O primeiro foi o Eugênio Gudin. Não falei com o Palocci porque não quis. Qual foi a grande virada da economia brasileira? Acho que foi com o JK. Ele acordou o Brasil para o que o País poderia ser. Mas de forma atabalhoada, com inflação e endividamento. Mas ele teve visão, sacudiu o País com a indústria automobilística onde começou tudo. Uns falam que foi Getúlio. Não foi. JK tinha idéias, sabia o que queria para o Brasil, mas não tinha técnicos suficientes para traçar um projeto integrado e fazer o País crescer sem inflação. Mas também era difícil crescer sem inflação porque o mundo não crescia. E o Brasil estava no canto do mundo, saindo da plantação de café para ir para a fábrica. Foi um salto para o vazio. Mas o salto serviu. O sr. acha que é mais fácil ou mais difícil ser jornalista de economia hoje em relação a 50 anos atrás? Não se deve avaliar como mais fácil ou mais difícil. Antigamente, tínhamos apenas meia dúzia de setores, era menos trabalhoso. Mas hoje você tem uma redação mais estruturada, com mais facilidade de comunicação, internet etc. Fiz muita reportagem de bonde, não tinha carro, não tinha estrutura. Hoje tem tudo, mas não é tão fácil, pois a economia está mais complexa. Como o sr. começou no jornalismo? Comecei em 1952, cobrindo Jânio Quadros. Casei aos 25 anos, em janeiro de 1958. Nesse mesmo ano a Folha (de S. Paulo) me despediu. Eu era um dos últimos contratados e ela demitia os últimos admitidos quando tinha dissídio. Fui demitido em plena lua-de-mel. Fiquei desempregado dois meses e meio. Desesperado, telefonei para o Abreu Sodré, que era presidente da Assembléia Legislativa. Ele me recomendou para o Julio Mesquita Neto. Fui conversar com ele, que deve ter ficado com pena de mim. Na época eu pesava 44 quilos e tinha duas úlceras. Ele me perguntou por que eu tinha sido demitido da Folha e eu disse que não sabia. O Julio Neto disse que tinha uma vaga por um mês na seção de economia. Aceitei. Mandei a minha mulher para a casa da mãe dela e trabalhava 16 horas por dia. Estava com raiva da Folha e precisava do emprego. Fui trabalhar com o Frederico Heller, que era o editor. Como era a seção de economia? Naquela época não tinha notícia, só comentário. Tinha um comentário do Robert Appy, do Frederico Heller. Não tinha reportagem. O Heller não queria notícia. Ele dizia que o importante era comentar as notícias, não dar as notícias. Quando comecei na economia, disse para o Heller que era um repórter de política, que não entendia nada de economia. Ele falou que isso não tinha importância, que também não sabia nada de economia e que iríamos enganar todo mundo. Aí o Heller foi me ajudando, dizendo com quem falar, abrindo fontes. Ele foi meu mestre no jornalismo econômico. Fui a primeira pessoa que o Julio Neto admitiu na redação, porque quem mandava na redação era o Claudio Abramo. Quando ele voltou de férias, queria me despedir e o Heller interveio. Daí o Claudio começou a me perseguir. Eu estava tão desesperado que entrava às 9 horas e saia às 22 horas. Estava humilhado, com raiva. Daí eu comecei a dar furo na Folha, um atrás do outro. O sr. lembra do primeiro furo? Naquela época, o café era todo cultivado com adubo animal. Havia teoria de que fertilizante não servia para o café. Numa reunião na Secretaria da Agricultura, fui o único repórter que ficou até o fim. Dessa reunião concluiu-se que era mais econômico e importante usar adubação química do que adubação animal na produção de café. Foi um rebuliço, uma revolução... Foi o meu grande furo no jornalismo econômico. O sr. tem formação acadêmica? Não tenho curso nenhum. Nasci em Santos (SP), fiz três vestibulares para medicina e não passei. Como eu sabia escrever porque lia muito, fui trabalhar em jornal. Leio até hoje de oito a nove horas por dia. Durmo às 2 horas e acordo às 10 horas: leio os jornais, limpo computador, respondo os e-mails. Às 13 horas, leio todo o noticiário, passeio por toda a economia mundial. Leio o Wall Street Journal, Financial Times, The Economist, New York Times, Washington Post, entro na Reuters, na Bloomberg, passeio pela Rússia, pela China. Começo a trabalhar às 15 horas, vou até às 20 horas. Daí descanso. Leio das 20 horas às 2 horas da manhã. A minha cabeça funciona o dia inteiro. O sr. foi um autodidata? Fui um autodidata em tudo. Não fiz nenhum curso de economia. Em 1965, a Cásper Líbero me convidou para dar aulas de jornalismo econômico. Eu criei a primeira cadeira de jornalismo econômico do Brasil. Eu dava para eles as informações que eles iam precisar no dia a dia. Mas um dia decidi parar, porque não tinha sentido. Como era a redação há 50 anos? Era pequena. Meu crachá era número 497. Descobri que quase ninguém falava inglês. Daí eu deduzi que se soubesse inglês teria mais oportunidades. Tinha só o inglês de colégio. Todo o dia eu anotava dez palavras novas para aumentar o meu vocabulário. Ia ao cinema e assistia a duas sessões. Na primeira eu via a história, na segunda eu fechava os olhos e ouvia a pronúncia. Aí o jornal descobriu que eu falava inglês. Uma das coisas boas e chatas foi que o Julio Neto descobriu que eu podia escrever editorial. Eu tinha feito uma série de reportagens especiais sobre a seca no Nordeste a pedido dele. Quando voltei, contei o que vi: a exploração dos usineiros, gente passando fome, criança subnutrida... Um dia ele me chamou e mandou que eu escrevesse um editorial. Saí para fazer reportagem e esqueci. Quando voltei, ele estava desesperado querendo editorial. Escrevi o editorial em dez minutos. Daí ele descobriu que eu escrevia editorial em dez minutos. Virei editorialista e deixei de ser repórter. Eu gostaria de ter sido só repórter. Mas o sr. foi o primeiro repórter especial do ?Estado?... Sim, eu e o Rubens Rodrigues dos Santos. Cobri todas as secas do Nordeste. O jornal topou várias frentes importantes: foi contra os usineiros nordestinos, foi contra a política da seca, criticamos a política da Sudene que não criava emprego. Fui o primeiro repórter do jornal mandado para a Amazônia e o Estado foi o primeiro jornal a dizer que a Transamazônica não daria certo. Outra campanha foi contra o monopólio do petróleo e contra a reserva de mercado da informática. Eu trabalhei em todos os jornais. O mais independente foi o Estado, que enfrentava os problemas, sempre. Qual foi a cobertura marcante? A da Amazônia. Por isso, agora decidi voltar à Amazônia para completar uma reportagem inacabada feita há 40 anos. Quero rever a Amazônia que tinha visto nos primeiros momentos do desmatamento e a que está sendo devastada hoje. Qual a lição que fica desses 50 anos de carreira? Fiz tudo que queria fazer: rádio, jornal, revista, TV e internet. Como jornalista que vive intensamente, vivi duas vidas numa só. Todo o meu êxito profissional devo ao Estado, a quem registro um grande gesto de gratidão. Seguramente, se tivesse ido para outro jornal não teria feito o que fiz e não seria o jornalista que sou.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.