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Trump e a pós-verdade

Uma métrica que, caso fosse analisada não só como mera curiosidade, deixava claro o favoritismo de Trump; seus números nas mídias sociais

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Atualização:

Era óbvio que Donald Trump tinha muitas chances de vencer. Quer dizer: não para nós, jornalistas. Ou para os analistas políticos. Quem leu atento as pesquisas percebeu que não houve surpresas. Quem leu incrédulo sobre a possível eleição de Trump, porém, não conseguiu ver quão apertado estava. Houve outra métrica na qual nós jornalistas prestamos pouca atenção. Uma métrica que, caso fosse analisada não só como mera curiosidade, deixava claro o favoritismo de Trump. Seus números nas mídias sociais.

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Nas redes, Donald Trump liderou a eleição do início ao fim. No dia em que se elegeu presidente, tinha quatro milhões de seguidores a mais do que Hillary Clinton no Twitter e uma vantagem de cinco milhões no Facebook. Seguidores quer dizer pouco. No engajamento, a distância entre ambos disparou: Trump conseguia nas redes, em média, três vezes mais engajamento.

Engajamento é o termo que a turma do ramo usa para destacar que a pessoa demonstrou interesse nítido no que viu. Deu um retweet, por exemplo, ou assistiu a um vídeo, clicou curtir, comentou, compartilhou. Não foi algo que passou à toa pela linha do tempo. Dentre os fãs de Trump, havia muita gente interessada no que ele tinha a dizer. Dentre os fãs de Hillary, bem menos. E isso diz muito.

A inteligência da campanha do candidato republicano foi perceber e explorar as possibilidades das redes sociais pelo que elas são. Sua natureza é a de criar bolhas de interesse. Aquele fenômeno no qual a turma de direita só conversa entre si e, a de esquerda, idem.

Não é à toa que o Dicionário Oxford selecionou, dentre todos os novos termos que incluiu neste ano, “post-truth” como símbolo do período. Pós-verdade não é apenas a exploração da mentira. É algo mais complexo. É quando a sociedade deixa de concordar com um conjunto de fatos em comum, se espatifa em grupos, e cada um enxerga a realidade por um filtro muito próprio. É neste universo que explodem sites ‘independentes’ que, embora de alcance médio, têm muito engajamento, leitores leais e apaixonados. Ali encontram o conforto de sua realidade.

Neste contexto, porém, o debate se torna inútil pois nem nos fatos essenciais concordamos. Há mudanças climáticas ou não há. Houve impeachment ou houve Golpe. Uma turma entrou na Câmara essa semana garantindo que há um movimento para implantar o comunismo no Brasil. Vivemos um tempo em que não há mais uma verdade comum a todos. Cada grupo tem a sua. E cada grupo soma lá alguns milhões de pessoas.

E é evidente que loucos são os outros. Só sobramos nós de sensatos.

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Donald Trump não parece ser um político de muitas convicções. Mas é um hábil populista: sente na veia o que seu público quer ouvir e faz o discurso no tom certo, com o vocabulário adequado, e a mensagem precisa.

Enquanto, na televisão, para o público geral, seus discursos pareciam por vezes até grotescos, em um nicho do público se encaixavam como luva. Isto foi falado e repetido ao longo de todo o ano eleitoral.

O que não foi percebido é a união deste discurso adequado com o mundo das mídias sociais e sites noticiosos de nicho.

Para os americanos de direita que se informam apenas dentro deste mundo, 2016 foi um contínuo comício de Donald Trump. Seus vídeos, com transmissões ao vivo de horas, foram devorados por gigantescas audiências. Seus tweets foram celebrados: alguém fala a nossa verdade.

O resultado é que, no dia de uma eleição vencida por margens muito estreitas, Hillary havia conseguido animar os eleitores naquele nível padrão de outros tempos. Trump, não. Trump teve eleitores leais como só na internet se é possível criar.

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