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Um desconstrutor de mitos

"Ele era um narrador que encantava e um incrivel adaptador de piadas"

Por Antonio Delfim Netto
Atualização:

Nos anos 50 do século passado, a Associação Comercial do Estado de São Paulo (Acesp) abrigava um Conselho Econômico do qual participavam alguns comerciantes estrangeiros, politicamente liberais, com sólida formação acadêmica e enorme prática internacional. Nele, discutia-se qual seria a política econômica mais conveniente para o desenvolvimento do Brasil, como o possível uso de uma taxa de câmbio flutuante. Às vezes convidava-se um economista independente para fertilizar os debates. Um deles, em 1955, foi Roberto de Oliveira Campos, um diplomata economista, já então conhecido por sua inteligente verve e sua concepção de um Estado regulador amigável com o setor privado, fórmula para a construção de uma sociedade civilizada, capaz de organizar-se em liberdade para perseguir uma razoável igualdade de oportunidades.

A palestra foi um enorme sucesso e justificou a expectativa que o precedeu. Ali, eu o conheci pessoalmente. Com reencontros intermitentes, fomos construindo uma respeitosa amizade nos 10 anos seguintes. Quando ele apresentou o Paeg (Programa de Ação Econômica do Governo) , em 1964, ela se solidificou. Começamos a ter contato cada vez mais estreito, porque me engajei na defesa do programa. Ele e o grande professor Octávio Gouvêa de Bulhões me convidaram para participar do Conselho Nacional de Economia. Foi o começo de minha vida pública.

Parceria. Delfim Neto, Roberto Campos e Francisco Dornelles, durante lançamento do BEM - Bloco Parlamentar de Economia Moderna, em outubro de 1991 Foto: José Varella/Estadão

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Logo depois, com a intervenção em São Paulo, em 1966, o ilustre Laudo Natel foi empossado Governador e me convidou para ser seu secretário da Fazenda. A minha amizade com Campos e Bulhões (a quem não substitui, apenas sucedi, no Ministério da Fazenda, em 1967) adquiriu, então, outra dimensão. Em 1982, tenho a impressão de que a minha insistência foi decisiva para que Roberto se candidatasse ao Senado por seu estado natal. Teve sucesso e nasceu um Senador brilhante, aplicado e combativo.

Roberto Campos foi, antes de tudo, um profundo pensador liberal, quando fora do governo, e um enorme regulador, quando nele. A partir do momento em que comecei a ter maior contato com Campos, ele mostrou grande admiração por Gunnar Myrdal, sociólogo, economista planejador e político e, como ele, um pensador universal e um desconstrutor de mitos. Durante muitos anos, sentamo-nos juntos na Câmara (ele, como eu, deputado, na época). Nós nos divertíamos com as propostas mirabolantes, em altos decibéis e baixo raciocínio, dos que se supunham de “esquerda” apenas porque ignoravam as limitações físicas que caracterizavam qualquer economia, mesmo as socialistas! Nunca fomos à tribuna porque era absolutamente inútil. A indignação de Campos no Congresso atingiu o seu máximo quando o Dr. Ulysses, protegendo um velho financiador do MDB, devedor contumaz que se apropriava indebitamente da contribuição de seguridade social de seus trabalhadores, apoiou a aprovação do que ele chamou de “a regressão ao século XIII”: a fixação da taxa de juro real na Constituição de 1988.

Já avançados na vida, um dia, na Câmara, sem nenhuma razão, me disse: “Delfim, perdi muito tempo. Só devia ter lido Hayek”. Interessante: Myrdal e Hayek que, de certa forma, se relativizam e se complementam, repartiram o Nobel de Economia, em 1974.

A maior batalha perdida por Campos foi a sua luta, premonitória, aliás, contra a política nacionalista míope da exploração do petróleo gestada por inspiração do estamento militar, com a criação da Petrobras, que ele chamava de “Petrosaurus”. Premonitória porque em 1979, 25 anos após a vitória do “petróleo é nosso”, produzíamos apenas 20% do petróleo que consumíamos! O nosso desenvolvimento começou a murchar quando o Cartel do Petróleo (do qual havíamos sido avisados em 1972, e não demos ouvido) foi bem sucedido no aumento de preço do produto. A explosão do valor das importações era impossível de ser acompanhada pelo aumento do valor das exportações. Obrigou-nos a um endividamento insustentável no governo do general Geisel (1975-79) que sempre fora um intransigente defensor do “petróleo é nosso”. Entre 1947 e 1980 o PIB cresceu a 7,5% ao ano; de 1981 a 2016, apenas 2,4%!

Com uma memória formidável, Campos era um narrador que encantava e um incrível adaptador de piadas. Sabia que a vida era um acidente irrecorrível e que, portanto, era preciso gozá-la intensamente. Com ele, foi-se boa parte da inteligência, da alegria de viver e da coragem brasileiras!

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*Antonio Delfim Netto, economista e consultor, foi deputado federal e ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura