PUBLICIDADE

Publicidade

Um país maravilhoso

A arrogância política norte-americana poderá tornar a Armadilha de Tucídides uma realidade

Por Ernesto Lozardo
Atualização:

O Brasil não é para principiantes, afirmava Tom Jobim. A China é para especialistas. A onda anti-China, iniciada pelo presidente norte-americano, Donald Trump, espalhou-se pelo Ocidente como uma pandemia ideológica com duas características do contágio: a perda da hegemonia norte-americana e o desconhecimento social sobre a história da China. O avanço chinês está calcado nas instituições internacionais. Seu histórico difere de qualquer país desenvolvido do Ocidente.

PUBLICIDADE

Países como Portugal, Espanha, Inglaterra e França expandiram suas hegemonias internacionais colonizando e escravizando povos. Os EUA, em nome da liberdade, da paz, da democracia, em meio a guerras ou acordos internacionais, espalharam seus valores culturais como forma de influenciar o destino político das outras nações. A história do Império do Meio não se assemelha à dos países europeus e dos EUA.

O ex-presidente norte-americano Richard Nixon (1969-1974) arquitetou a oportunidade de inserir a China no mundo ocidental. Não se tratou de uma política de dominação, mas de uma iniciativa para liderar o processo de expansão do capitalismo. Nixon afirmou: “Os chineses nunca deixarão de ser socialistas”. Depreende-se da Doutrina Nixon a inserção da China na economia global. Na época, a aproximação dos EUA evitou uma possível guerra entre Rússia-China e Japão-China.

A onda anti-China, iniciada por Trump espalhou-se pelo Ocidente como uma pandemia ideológica. Foto: Erin Scott/Efe

A Henry A. Kissinger, seu secretário de Estado, coube a tarefa de construir o entendimento político da abertura chinesa ao Ocidente. A nação norte-americana aplaudiu a reaproximação, pois o passado chinês nos EUA, durante o século 19, permanecia vivo na mente norte-americana.

Naquele período, a família Rockefeller enriqueceu vendendo querosene aos chineses e muitos americanos investiram na construção de estradas, escolas, universidades e hospitais na China. Os chineses construíram mais da metade das ferrovias norte-americanas. Admiravam o país pelo progresso material, pelo Estado de Direito e pela liberdade. Referiam-se aos EUA como um país maravilhoso.

Eles são gratos aos norte-americanos pelo apoio à sua inserção na economia ocidental. O governo chinês reconhece a importância das instituições internacionais e o vigor da globalização. Esse contexto político-institucional possibilitou seu êxito econômico e tecnológico em quatro décadas, algo que os europeus alcançaram em dois séculos.

Com o fim da 2.ª Guerra Mundial, os EUA tornaram-se o principal protagonista na construção da paz. O acordo de Bretton Woods foi o pilar da prosperidade e da hegemonia global norte-americana.

Publicidade

Esse acordo possibilitou aos EUA a prerrogativa de assegurar a paz na Eurásia. O livre-comércio foi o recomeço da reconstrução das economias destruídas pela guerra, mas também a possibilidade da absorção do progresso norte-americano. O dólar tornou-se a moeda única do comércio e as instituições internacionais (ONU, FMI, Banco Mundial, OMC e outras) deram ao país a prerrogativa de nortear as negociações econômicas e políticas globais. O acordo propiciou aos EUA a condição indisputável de soberania hegemônica na construção da paz e da prosperidade mundial nos últimos 70 anos.

Na sua história de mais de 2.500 anos, a China nunca foi motivo de risco à estabilidade econômica regional ou à política global. Neste início de século, os EUA, com um pouco mais de 200 anos de existência, representam risco político às instituições internacionais.

A ambição desenvolvimentista chinesa sempre foi direcionada ao comércio, à preservação dos seus valores ético-culturais, à educação e ao desenvolvimento tecnológico. Atribuir à China a causa da pandemia da covid-19 é um despropósito científico e às relações internacionais. A arrogância política norte-americana poderá tornar a Armadilha de Tucídides uma realidade. A única forma de evitá-la será mediante a realização de um novo acordo global à Bretton Woods, incluindo a China e os demais países asiáticos desenvolvidos.

*PROFESSOR DE ECONOMIA DA EAESP-FGV, É AUTOR DO LIVRO ‘OK, ROBERTO. VOCÊ VENCEU! O PENSAMENTO ECONÔMICO DE ROBERTO CAMPOS’

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.