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Um soberano sem fundos

Por Dionísio Dias Carneiro
Atualização:

O paraíso de um governante deve ser um lugar onde se podem anunciar benesses aos governados sem correr o risco de ser tachado de irresponsável. Nada como preços externos favoráveis para os áulicos mostrarem que a terra de Cocagne pode ser conquistada pela "vontade política" ou pela a criação de um fundo soberano. Vejamos alguns fatos por trás dos denominados fundos soberanos de riqueza (FSR). Superávits globais de um país correspondem a déficits globais de seus parceiros, e a disposição para financiar déficits alheios costuma ter limites. Assim, desequilíbrios bilaterais prolongados tornam-se fonte de desconfiança e de risco de depreciação súbita. Os conflitos são inevitáveis. Já se desconfiava, há tempos, que os EUA não poderiam contar com o financiamento barato para seus déficits, oferecendo apenas títulos do Tesouro americano ao Banco Popular da China. O mundo superavitário, do qual fizemos parte entre 2004 e 2007, deve acumular cerca de US$ 1,2 trilhão de dólares apenas em 2007. Esse valor cresce mais rapidamente do que o estoque de títulos do Tesouro e, assim, alimenta os fundos soberanos que buscam outros ativos, um movimento que tem sido denominado de "diversificação forçada". Fundos que nasceram como instrumentos de gestão de reservas em países monoexportadores se tornaram instrumento da estabilização intertemporal da renda e do consumo. O caráter político de sua gestão, no entanto, exacerba reações nacionalistas dos deficitários. Nada de novo nessas reações, exceto que os deficitários de hoje detêm maior poder internacional do que os de ontem. Três fatos explicam a atenção recente para o papel desses fundos: seus tamanhos, as restrições políticas impostas às suas aquisições e sua generalização como instrumento de poder dos Estados superavitários. Estima-se que os ativos desses fundos estejam hoje entre US$ 1,5 trilhão e US$ 2,5 trilhões, ou seja, entre 3% e 5% do PIB mundial. Fundos de Dubai e Catar estão presentes em todos os mercados. As reações vieram. No ano passado, o Congresso americano submeteu transações que pudessem ser enquadradas como de importância "estratégica" à aprovação do governo, quando a DP World, fundo de Dubai, comprou, por intermédio da subsidiária inglesa P&O, e teve de revender a administração de portos na costa leste dos EUA. Algumas aquisições foram simplesmente vetadas, como a da Conoco pela Citic chinesa, outras são bem-vindas, como as aquisições de ações da Blackstone e das debêntures do Citigroup. Essas reações têm seus limites, pois, uma mudança na composição das reservas asiáticas, que replique a composição dos parceiros comerciais, já prenunciaria um desastre cambial: uma queda de 25% na demanda (estoque) de dólares, ou seja, algo como US$ 1,4 trilhão, segundo um estudo do Standard Chartered. Do ponto de vista macroeconômico, os FSRs podem aliviar a valorização indesejada na moeda do país superavitário e limitar a excessiva volatilidade cambial. Sinalizam, aos investidores, fluxos de caixa mais estáveis para projetos de produção de exportáveis, reduzem a vulnerabilidade externa e aliviam a sobrecarga de objetivos da política monetária, sem a necessidade de controles de capital a la Colômbia e Índia. Onde há tradição de vulnerabilidade externa, temores de parada súbita dos fluxos podem ser compensados pela utilização do excesso de reservas, nas fases boas, para diminuir os danos ao consumo, e aos negócios, nas fases ruins. Há, entretanto,desvantagens para os países, pois a estatização das decisões de investimento pode retardar a correção de desequilíbrios estruturais via taxas de câmbio. Há também peculiaridades locais que requerem atenção. Depois de conseguir zerar a dívida externa pública líquida, o governo Lula afrouxou o esforço fiscal diante da melhoria cíclica das receitas e, assim, continua deficitário. A criação de um fundo soberano brasileiro é atraente sob vários aspectos, mas isso requer um Tesouro pão-duro. Para financiar o investimento para aprofundar a produção de exportáveis industriais via fundo soberano, o Estado precisa tornar-se um poupador líquido. Caso contrário, terá de endividar-se mais, redefinindo a idéia de responsabilidade fiscal, um pesadelo. Um soberano literalmente sem fundos vai retomando uma rota que já fragilizou o País no passado. Recusa-se a cortar os gastos de consumo, por viver o sonho medieval de Cocaigne, em que não há escassez nem escolhas incômodas, apenas espaço livre para conversa fiada. *Dionísio Dias Carneiro, economista, professor do Iapuc, é diretor do Iepe/CdG

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