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Evergrande pressionou os próprios funcionários a emprestar dinheiro para salvar a empresa

Para evitar o risco de calote, a incorporadora da China deu duas opções aos seus colaboradores: empreste dinheiro ou perca o bônus do fim do ano; agora os trabalhadores temem não receber o pagamento da dívida

Por Alexandra Stevenson e Cao Li
Atualização:

Quando a problemática gigante do setor imobiliário da China, Evergrande, ficou sem dinheiro este ano, ela recorreu aos próprios funcionários e fez uma proposta intimidadora: aqueles que quisessem continuar com seus bônus teriam que fazer um empréstimo de curto prazo à empresa.

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Alguns trabalhadores pediram dinheiro aos amigos e familiares para emprestar à Evergrande. Outros pegaram dinheiro emprestado do banco. Então, neste mês, a Evergrande repentinamente parou de pagar os empréstimos, que haviam sido negociados como investimentos a juros altos.

Agora, centenas de funcionários se juntaram a compradores de imóveis em pânico na reivindicação para receber de volta o dinheiro que deram para a Evergrande, reunindo-se do lado de fora dos escritórios da empresa por toda a China para protestar na semana passada.

Foto aérea do complexoEvergrande Cultural Tourism City, da incorporadora chinesa Evergrande, que teve a construção paralisada Foto: VIVIAN LIN/AFP - 17/09/2021

Outrora a mais rica das incorporadoras imobiliárias chinesas, a Evergrande se tornou uma das empresas mais endividadas do país. Ela deve dinheiro para credores, fornecedores e investidores estrangeiros. Deve apartamentos inacabados para compradores de imóveis e já acumulou mais de US$ 300 bilhões em contas não pagas. A Evergrande enfrenta processos judiciais de credores e viu suas ações perderem mais de 80% de seu valor este ano.

Os reguladores temem que o colapso de uma empresa do tamanho da Evergrande envie tremores por todo o sistema financeiro chinês. No entanto, até agora, Pequim não entrou em cena com um plano de resgate financeiro, tendo prometido ensinar uma lição às empresas gigantes sobrecarregadas com dívidas.

Os protestos raivosos liderados por compradores de imóveis – e agora pelos próprios funcionários da empresa – talvez mudem esse plano.

A Evergrande está em dívida com aproximadamente 1,6 milhão de apartamentos, de acordo com uma estimativa, e talvez deva dinheiro a dezenas de milhares de seus funcionários. Como Pequim continua relativamente em silêncio quanto ao futuro da empresa, aqueles que precisam do dinheiro dizem que estão ficando impacientes.

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“Não resta muito tempo para nós”, disse Jin Cheng, 28 anos, funcionário na cidade de Hefei, que disse ter emprestado US$ 62 mil de seu próprio dinheiro para a Evergrande Wealth, o braço de investimento da empresa, a pedido da alta administração.

Enquanto se espalhavam os rumores pela internet chinesa de que a Evergrande talvez declarasse falência este mês, Jin e alguns de seus colegas se reuniram em frente aos escritórios do governo da província para pressionar as autoridades a intervir.

Na cidade de Shenzhen, no sudeste do país, compradores de imóveis e funcionários lotaram o saguão da sede da Evergrande na semana passada e gritaram pedindo seu dinheiro de volta. “Evergrande, devolva meu dinheiro que ganhei com sangue e suor!”, era possível se escutar entre os gritos registrados em uma gravação em vídeo.

Jin disse que os funcionários da Fangchebao, a plataforma online da Evergrande para vendas de imóveis e automóveis, foram informados de que cada departamento tinha que investir mensalmente na Evergrande Wealth.

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A Evergrande não respondeu a uma solicitação de comentário, mas a empresa avisou recentemente que estava sob “tremenda” pressão financeira e disse que havia contratado especialistas em reestruturação para ajudar a determinar seu futuro.

A Evergrande cresceu com o boom imobiliário

As coisas nem sempre foram assim. Por mais de duas décadas, a Evergrande foi a maior incorporadora da China, ganhando dinheiro com um boom imobiliário em uma escala que o mundo nunca tinha visto. Após o sucesso no setor, a Evergrande se expandiu em novas áreas - garrafas de água mineral, equipes esportivas profissionais e veículos elétricos.

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Bancos e investidores injetaram dinheiro alegremente, apostando na crescente classe média da China e em seu apetite por casas e outras propriedades. Mas, nos últimos tempos, o mercado imobiliário tem estado sob investigação pelos reguladores chineses, que querem dar fim aos animados anos do boom no setor e têm forçado o pagamento de suas dívidas.

A ideia era reduzir a exposição dos bancos chineses ao setor imobiliário. Porém, no processo, os reguladores confiscaram o dinheiro que incorporadoras como a Evergrande precisavam para terminar de construir os imóveis, deixando as famílias sem as casas pelas quais já haviam pago.

“O sistema financeiro chinês é realmente complexo e, quando você vê fissuras como essa, percebe o impacto que isso poderia ter na sociedade”, disse Jennifer James, gestora de investimentos da Janus Henderson Investors.“Se a Evergrande desaparecesse amanhã, isso poderia ser um problema social generalizado.”

Jennifer e outros investidores disseram que ficaram sabendo da estratégia de gestão de patrimônio da Evergrande envolvendo seus funcionários apenas neste mês, quando a empresa revelou que devia US$ 145 milhões em reembolsos.

A Evergrande tentou vender partes de seu vasto império para conseguir novos fundos, mas disse na semana passada que "não estava segura se o grupo será capaz de consumar tal venda". Ela acusou a imprensa de provocar pânico entre os compradores de imóveis com a cobertura negativa.

Mas os canais de financiamento da Evergrande começaram a secar bem antes da semana passada. De acordo com entrevistas com funcionários, reportagens da imprensa estatal e documentos corporativos vistos pelo New York Times, a empresa começou a forçar os funcionários a ajudarem a resgatá-la já em abril, quando começou a solicitar os empréstimos de curto prazo.

Compradores que não receberam seus imóveis protestam na porta da sede da Evergrande na cidade de Shenzhen. Foto: Noel Celis/AFP

Cerca de 70% a 80% dos funcionários da Evergrande em toda a China foram convidados a emprestar o dinheiro que seria usado para ajudar a financiar as operações da Evergrande, disse Liu Yunting, consultor da Evergrande Wealth, recentemente ao Anhui Online Broadcasting Corp., grupo de comunicação estatal.

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Uma versão dessa entrevista foi retirada do ar na sexta-feira. O Anhui Online Broadcasting não respondeu a um pedido de comentário.

A extensão da campanha e quanto dinheiro a empresa talvez tenha arrecadado não estão claros. Os funcionários foram instruídos a investir uma certa quantia de dinheiro em produtos da Evergrande Wealth e que, se não o fizessem, seu pagamento por desempenho e bônus seriam deduzidos, disseram os funcionários ao Anhui.

A gerência da empresa disse que os investimentos eram parte do “financiamento da cadeia de suprimentos” e permitiriam à Evergrande fazer pagamentos aos seus fornecedores, disse Liu em sua entrevista para o Anhui. “Como nós, funcionários, tínhamos de cumprir uma cota, pedimos aos nossos amigos e familiares que investissem o dinheiro”, disse ele.

Liu disse que seus pais e sogros investiram US$ 200 mil e que ele colocou cerca de US$ 75 mil de seu próprio dinheiro na Evergrande Wealth.

Mesmo antes dos protestos da semana passada, a Evergrande já não estava sendo vista com bons olhos por Pequim. No final do mês passado, seus executivos foram convocados para uma reunião com reguladores. Funcionários das principais instituições de fiscalização de bancos e seguros da China disseram aos executivos para darem um jeito em suas altas dívidas com o objetivo de conseguir manter a estabilidade do mercado financeiro da China.

A maior preocupação das autoridades são os apartamentos inacabados da Evergrande. A empresa tem cerca de 800 empreendimentos em andamento em mais de 200 cidades por toda a China.

A Evergrande, que muitas vezes vendeu apartamentos para conseguir dinheiro antes de eles serem concluídos, talvez ainda precise entregar até 1,6 milhão de imóveis a seus compradores, segundo uma estimativa do Barclays.

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Sob investigação reforçada, a Evergrande reuniu seus principais executivos no início deste mês e pediu a eles que assinassem publicamente o que chamou de “ordem militar” - uma promessa de finalizar os empreendimentos imobiliários inacabados.

Wesley Zhang e sua família estão entre as centenas de milhares daqueles que ainda estão aguardando por seus apartamentos e esperam que a empresa seja capaz de entregá-los. Zhang, 33 anos, decidiu participar dos protestos com outros compradores de imóveis em Hefei na semana passada, depois de saber que a Evergrande também devia dinheiro aos funcionários.

“Todos estão ansiosos. Somos um pouco como formigas em cima de uma panela quente, sem ideia do que fazer”, disse Zhang, usando uma expressão chinesa para descrever a aflição de ver um investimento de US$ 124 mil provavelmente desaparecer. Ele disse que tinha esperança que os protestos levassem o governo a agir antes que fosse tarde demais.

“Esperamos que isso faça com que o governo central preste atenção suficiente”, disse Zhang. "E que, então, alguém apareça para intervir." / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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