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Cannabis para pets? Como os animais podem se beneficiar do uso medicinal da planta

Uso do canabidiol para animais ainda não foi regulamentado no País; relatório aponta que potencial de uso ultrapassa a marca de de 500 mil bichos de estimação

Por Anita Krepp
Atualização:

Braddock, um simpático cão da raça boxer, logo no segundo mês de vida começou a sofrer com crises de epilepsia que progrediram com o passar do tempo. Antes dos 6 meses, foi desenganado por vários veterinários. “Diziam que a única solução era a eutanásia, que ele não viveria muito mais tempo”, lembra a tutora Joyce Armelin, enquanto brinca com Braddock, hoje com 2 anos. O bichinho sobreviveu graças ao uso da cannabis medicinal

A tutora Joyce Armelin e seu cão Braddock, que faz uso de cannabis medicinal para tratar crises de epilepsia. Foto: Arquivo pessoal

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Três meses após ingerir as primeiras gotinhas de óleo de cannabis, o boxer passou a não mais precisar da maioria dos remédios controlados, como diazepam e gardenal, que tomava antes. Já livre de uma série de efeitos colaterais, Braddock voltou a andar, a brincar com outros animais e restabeleceu o apetite. “Logo que ele começou a usar o óleo percebemos as mudanças, foi muito rápida a transformação, ele agora é outro cachorro. Graças ao doutor Fábio”, diz Joyce, mencionando o veterinário mais conhecido como Dr. Pet Cannabis

Fábio Mercante de San Juan tratou Braddock e outros 500 outros animais nos últimos 12 anos. Os primeiros atendimentos de Mercante aconteceram em 2010, enquanto experimentava empiricamente com os pets de amigos e da família. Ao longo desse tempo, reuniu relatos de casos com controle a cada três meses – um material que só saiu à luz em 2018, quando o tema cannabis já estava pautado no debate público. 

“Não tinha razão de eu viver nas sombras, então quis mostrar todos os resultados que já tinha e comecei a divulgar”, conta ele, que logo foi chamado para prestar explicações no Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFVM), já que esse tratamento não é regulamentado. Mercante criou em 2019 um curso de medicina canabinoide para veterinários e já formou mais de 1,5 mil profissionais.

Conhecido como Dr. Pet Cannabis, o veterinário Fábio Mercante é um dos incentivadores do uso de medicamentos a base do canabidol. Foto: Arquivo Pessoal

O veterinário e ativista prescreve graças a uma brecha na lei. De um lado, há a Anvisa autorizando a prescrição da cannabis apenas para médicos e dentistas. De outro, o CFMV autorizando os veterinários a utilizar todos os recursos que acharem necessários para preservar a saúde do paciente animal, inclusive de medicamentos controlados para humanos – caso da cannabis.

“Nem preciso indicar o tratamento, porque quem me procura já vem buscando a cannabis. Desde 2019, eu só faço atendimento canábico”, diz. Em um passado não muito distante, alguns tutores recusavam a terapia, desconfiados de que seus bichinhos ficariam “doidões”. Ele até chegou a ser demitido por prescrever a substância num tempo em que falar em maconha era um tabu ainda maior. 

Potencial de mercado

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Dono do terceiro maior mercado pet do mundo – com um faturamento de R$ 22,3 bilhões em 2019 –, o Brasil também fica na terceira posição no ranking dos países com o maior número de animais de estimação (140 milhões). Isso torna o País um enorme mercado potencial, com previsões de movimentar até R$ 1,45 bilhão até o quarto ano de regulação da cannabis, gerando até R$ 109,5 milhões de arrecadação aos cofres públicos, segundo relatório da startup de análise de dados Kaya Mind.

A regulamentação, porém, ainda não tem data para acontecer.“Hoje, a liberação da cannabis para o mercado pet é muito mais uma questão política do que técnica, pois tecnicamente conseguimos embasar a utilização da cannabis para os animais”, afirma a veterinária Talita Nader, que preside o Grupo de Trabalho Sobre Cannabis Medicinal, no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. 

Talita tem bastante claros os benefícios que a terapia canabinoide aportou à prática veterinária. Segundo os dados da Kaya Mind, mais de 555 mil animais de estimação poderiam ser beneficiados por tratamentos com cannabis no Brasil – mais especificamente, 498.629 cães e 56.623 gatos.

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A startup chegou a esse número – que equivale a 15% da população total de cachorros e 12% da de gatos – considerando a população de animais vacinados, com tutores acima dos 24 anos e que vão ao veterinário pelo menos uma vez a cada três meses. Ou seja, um público que já gasta um bom dinheiro com seu pet e estaria potencialmente mais disposto a bancar um eventual tratamento com a substância, que tem preço médio de R$ 600 por mês.

Percebendo a demanda crescente de tutores e outros veterinários pela legalização e inclusão da cannabis no arsenal de terapias para pets, Talita pediu ao Conselho Regional de São Paulo autorização para a criação de um grupo especial para tratar do tema e iniciou os trabalhos em janeiro passado. Em abril, conseguiu que o CFMV emitisse, em abril, uma nota de orientação para o uso da substância, uma expressão singela de apoio. 

De olho no potencial de mercado, a veterinária Karina Wogel lançou o VetCannabis, uma plataforma que conecta tutores à veterinários e associações de pacientes que atuam com medicação à base de canabidiol. Foto: Arquivo pessoal

Também se movimentou para entender melhor as condições em que os veterinários estão prescrevendo cannabis no Brasil, e em parceria com a Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica (SBPPC), lançou uma pesquisa online aberta por tempo indeterminado para veterinários e tutores. Os resultados serão os primeiros deste tipo no País. Além disso, também conseguiu reunir-se com a Anvisa a fim de que a entidade publique urgentemente uma portaria que autorize o uso veterinário do produto. 

O pedido, no entanto, só ganhará força à medida em que outros profissionais do setor se organizem para pressionar o órgão – aliás, os órgãos. É que, além da Anvisa, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) também apita nesse jogo. Como a prática veterinária é regulada pelo Mapa, e os assuntos relativos à cannabis, pela Anvisa, acaba havendo um vácuo decisório.

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O professor e pesquisador do uso veterinário da cannabis na Universidade Federal de Santa Catarina, Erik Amazonas, cansado do jogo de empurra entre os dois órgãos, enviou, em maio, uma carta endereçada à Anvisa, ao Mapa e ao CFMV, reforçando os argumentos sustentados pelo setor. “A gente quer percorrer o mesmo caminho, que já foi desbravado na regulação da cannabis medicinal para o humano, não queremos nem mais nem menos”, apoia Talita. E completa: "O critério de prescrição de morfina para humanos é exatamente o mesmo para a veterinária. É possível caminhar lado a lado.”

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Os primeiros registros de uso da cannabis na sociedade e a domesticação de animais datam do mesmo período, há cerca de 12 mil anos. O primeiro uso da cannabis na veterinária, no entanto, só aconteceu no século 12, na Índia. Desde então, observou-se a melhora em vários padrões de qualidade de vida de animais alimentados ou tratados com derivados da planta. Mas só recentemente a ciência passou a se interessar para valer no assunto. 

Dados exclusivos de um relatório inédito sobre cannabis e mercado pet, que será lançado pela consultoria Kaya Mind, especializada no setor, mostram que, entre 1998 e 2021, houve um aumento de 492% nas publicações científicas no mundo sobre o tema. Em 2018, um estudo da Universidade de Cornell, em Nova York, foi pioneiro e gerou resultados significativos para a área, ao abordar o uso de óleo de canabidiol para cachorros com osteoartrite. 

Estudos e relatos de casos já sustentam a prescrição para tratar várias patologias, como dor crônica, câncer, epilepsia, convulsões, ansiedade, inflamações, hiperestesia e osteoartrite em cães e gatos, com CBD e THC.

Com o uso de cannabis medicinal, o cão boxer Braddock conseguiu melhorar dos sintomas de epilepsia e escapar da eutanásia. Foto: Arquivo pessoal

Segundo especialistas, a cannabis funciona bem nos animais por eles, assim como nós, também terem um sistema endocanabinoide, responsável por metabolizar a erva por receptores espalhados pelo corpo, promovendo a homeostase (a capacidade de manter a regulação do corpo). 

Esses receptores, aliás, são bem mais sensíveis que os dos humanos e, por isso, os pets normalmente necessitam de concentrações muito baixas nas formulações que tomam. O que, por um lado,também representa um perigo, à medida em que não haja uma regulamentação própria e mais tutores se arrisquem a medicar o animal por conta própria, baseado em uma escala humana.

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O jeito mais seguro de tratar um animal com alguma das indicações clínicas para cannabis é passar por um profissional. Já existem marketplaces, como o VetCannabis, lançado pela veterinária Karina Wogel, que conectam tutores com veterinários e associações de pacientes. O relatório da Kaya Mind aponta que 16 das 78 associações canábicas pesquisadas no Brasil se manifestam ativamente a favor da cannabis para fins veterinários.

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