21 de maio de 2022 | 14h00
Bolsas de academia da Nike, tênis da Adidas com o logotipo da empresa, câmeras do tipo Polaroid… Esses eram “presentinhos” que grandes startups brasileiras, que amealharam investimentos bilionários, costumavam dar a seus funcionários até pouco tempo atrás. Esse tempo de gastos supérfluos, no entanto, chegou ao fim nos últimos meses, quando várias companhias de tecnologia deixaram de contratar e passaram a demitir, para cortar custos. Deve ser o início de uma realidade bem mais austera para o setor.
Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, enquanto o dinheiro estava farto em todo o mundo até o ano passado, em uma fase em que os juros baixos impulsionavam investimentos mais arriscados, não havia preocupação de que a torneira de recursos poderia secar. Mas a guerra na Ucrânia e as altas de juros ao redor do mundo mudaram essa realidade.
Amure Pinho, fundador do fundo Investidores.VC, acredita que as demissões são a ponta do iceberg do que as startups devem enfrentar daqui em diante. “Pode haver redução de verbas de marketing e ajustes de orçamento e estratégia. Essa tendência vai afetar startups de todos os setores”, afirma.
O exemplo da startup do setor imobiliário QuintoAndar evidencia bem essa “virada”. Poucos meses depois de distribuir centenas de câmeras de R$ 300 para boa parte de seus funcionários e parceiros, a companhia ganhou os holofotes ao fazer uma série de cortes na equipe. Enquanto internamente se falava de uma redução de 20% no quadro de 4 mil funcionários, o fundador e presidente da startup, Gabriel Braga, fala em 4%. Ou seja, oficialmente cerca de 200 pessoas foram desligadas. “É um ajuste do nível de euforia”, admite.
O ajuste de rota das startups após um período relativamente longo de bonança vem para solidificar no ecossistema brasileiro de tecnologia uma noção que parece ter sido esquecida: passada a fase da chegada de um grande investimento, os negócios em fase inicial são, por si, uma aposta arriscada. Essa é a visão do influenciador Alberto Brandão, conhecido como Startup da Real nas redes sociais e que se dedica a desmistificar mitos do empreendedorismo. Ele alerta: o risco de novas demissões é grande.
Além disso, o cenário macroeconômico deve elevar o exame de investidores sobre as contas e as estratégias desses negócios. “A pressão está muito maior nas grandes startups, até mesmo porque o retorno esperado para elas não é tão grande como era em anos anteriores”, diz Arthur Mesnik, sócio e responsável pelo braço de venture capital da Trígono.
É por isso que o nome do jogo atualmente é eficiência. “Não vou continuar a 300 quilômetros por hora em uma estrada onde posso bater em todo mundo. É um momento de preservar capital”, diz Braga, do QuintoAndar. Após fazer demissões, a empresa olha para outros gastos, como em marketing e na busca de novos segmentos de atuação. “Antes, na pressa, pensávamos que precisaríamos de 120 pessoas para fazer algo e, agora, percebemos que dá para fazer com 30, por exemplo.”
Outras empresas estão no mesmo caminho, segundo Dan Yamamura, sócio do fundo de investimento de risco Fuse Capital. Ele ressalta, porém, que não vê risco de uma “quebradeira”. “Certamente isso não vai acontecer, pois temos um ecossistema forte, com startups com fundamentos excelentes, e com capital para isso. Mas a margem diminuiu.”
Alguns casos, no entanto, assustam. O atacado digital Facily, por exemplo, demitiu cerca de 200 funcionários quatro meses após receber um aporte que o elevou ao status de “unicórnio”, apelido dado a startups que valem mais de US$ 1 bilhão. Segundo relatos de ex-funcionários, a empresa não tinha estrutura para atender ao fluxo de vendas ou para fazer o atendimento aos clientes, o que resultou em recorde de reclamações no Procon em 2021.
A startup justificou os cortes como parte da estratégia para melhorar sua eficiência. A Facily afirmou, por nota, que sempre vai “priorizar o que de fato faz a diferença no impulsionamento do nosso negócio. Para preservar nossas pessoas preferimos não comentar sobre processos internos, que tratamos de forma sigilosa e respeitosa”.
Mas já há casos de companhias que conseguiram se recuperar de uma fase de dificuldades. Uma delas é a Gympass, unicórnio que precisou mudar o modelo de negócios quatro vezes e quase faliu duas vezes – a startup chegou a ter apenas R$ 1 mil na conta e também precisou demitir grande parte dos funcionários.
Foi então que decidiu pelo formato de venda de diárias e mensalidades de academias para empresas em vez do consumidor final. “Criar uma empresa é uma maratona, e não uma prova de 100 metros”, afirma João Barbosa, cofundador e líder global de parcerias do Gympass, hoje presente em 11 países.
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Gabriel Braga, CEO do QuintoAnda
21 de maio de 2022 | 14h00
Uma das queridinhas do mercado de startups brasileiro, o “unicórnio” (apelido dado a empresas do setor com valor acima de US$ 1 bilhão) QuintoAndar passou por ajustes nos últimos meses, após um período contínuo de crescimento e investimento nos anos anteriores. Após realizar demissões, a companhia vai diminuir o ritmo, diz seu CEO, Gabriel Braga. “É melhor fazer o básico”, admite.
Está muito diferente. As mudanças estruturais da economia têm um efeito grande na indústria de venture capital. Antes, o mercado se resumia em abundância de capital, com recorde de aportes.
A música mudou. Não vou continuar a 300 km/h, como estava antes, se agora estou em uma estrada esburacada e em que posso bater o carro. Agora, você reduz marketing e velocidade para abrir novas frentes. É fazer melhor o básico.
Vamos continuar apostando, mas uma coisa é você plantar tudo numa fazenda de uma vez. Agora, vou colocar em um canteiro e, se der resultado, parto para o resto da fazenda. O redimensionamento dos colaboradores tem a ver com isso.
Vai forçar todo mundo a ser mais criativo. Os negócios têm de se sustentar, e agora temos um incentivo para inovar sem gastar tanto. Antes, na pressa, você pensava que precisava de 120 pessoas para fazer algo. E agora enxerga que pode fazer com 30.
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