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Alta liderança LGBT promove inclusão em grandes empresas de cima para baixo

Para executivo da Recarga Pay, líderes têm responsabilidade social com agenda LGBT, ao inspirar jovens no mercado de trabalho; ex-IBM defende que chefes tenham agenda intencional de inclusão

Por Marina Dayrell
Atualização:

Em 2014, o presidente da Apple, Tim Cook, escreveu em uma carta publicada na mídia norte-americana: “Se ouvir que o CEO da Apple é gay pode ajudar alguém lutando para chegar à ciência de quem ele ou ela é, trazer algum conforto a qualquer um que se sinta sozinho ou inspirar as pessoas a insistir em sua igualdade, então vale a pena trocar isso pela minha privacidade”. Sete anos depois, os posicionamentos públicos de profissionais LGBT na alta liderança das empresas ainda são raros, mas muito importantes para a trajetória profissional de LGBT que estão começando suas carreiras.

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Quantos líderes LGBT você conhece? Se subirmos para a alta liderança das empresas: quantos CEOs, presidentes e vice-presidentes assumidamente LGBT vêm à sua mente? No Brasil, não há muitos nomes que ocupam altos cargos e que falem publicamente sobre orientação sexual ou identidade de gênero. Não é mero acaso que apenas 15% dos profissionais LGBT falem sobre identidade de gênero e orientação sexual diretamente com a sua liderança, segundo a pesquisa O Cenário Brasileiro LGBTI+, feita pela consultoria Mais Diversidade com o apoio institucional do Estadão

“A representatividade é algo muito importante porque, quando eu vejo alguém parecido comigo na liderança, isso não só me dá segurança para falar abertamente sobre minhas questões como também me aponta uma possibilidade de progressão na carreira”,  explica Ricardo Sales, consultor e sócio-fundador da Mais Diversidade. “Quando a liderança faz parte da comunidade LGBT e fala sobre isso, passa uma sinalização positiva. Mostra que tem uma chance grande - não uma garantia - de que o ambiente é seguro e que aquele é um espaço em que ser LGBT não vai ser visto como um obstáculo na carreira.”

Para Danielle Torres, sócia-diretora de práticas profissionais na KPMG, mulher transgênero e bissexual, o compromisso com a diversidade nas empresas tem que partir de cima. Foto: Alex Silva/Estadão

Nas últimas semanas, a reportagem foi à procura de altos líderes que sejam gays, lésbicas ou transgênero. Para chegar aos nomes, foram ouvidos especialistas de diversidade e inclusão e profissionais da comunidade. Durante o processo de pesquisa, ficou evidente que o tema ainda é tabu no País e são poucos os LGBT na alta liderança que falam publicamente sobre o tema. 

O fato contrasta com a necessidade dos funcionários que estão mais abaixo hierarquicamente nas organizações: segundo a pesquisa da Mais Diversidade, 54% dos entrevistados acreditam que ter mais referências LGBT entre executivos e executivas é um dos itens mais importantes no mercado de trabalho.

“Quando eu entrei no mundo corporativo, há 18 anos, não tinha ninguém abertamente gay. Esse era o meu medo: se não tem um gay, é porque o gay não cresce na organização, logo eu não posso me assumir. Eu tinha receio de me posicionar, de parecer muito afeminado, de ser excluído das oportunidades. Então, se eu tivesse uma referência na época, eu teria um ponto de apoio. Saber que alguém passou por isso e cresceu tira um peso muito grande das pessoas”, conta Argentino Oliveira, diretor de Gente e Gestão da Suzano. 

Para ele, hoje, falar sobre ser um homem gay no mundo corporativo é parte de sua responsabilidade como um líder do C-level, de alto cargo. “Nós que estamos em posições executivas em empresas brasileiras e multinacionais temos a obrigação de ter o impacto social, porque a gente consegue impactar muito mais estando em cargos executivos em empresas grandes.” 

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Danielle Torres, sócia-diretora de práticas profissionais na KPMG, mulher transgênero e bissexual, completa que o compromisso tem que partir de cima: “Em primeiro lugar, precisa existir a diversidade como uma função, como algo perene. E precisa ser de cima para baixo. Não adianta ter um comitê de diversidade, se ele não vier da alta liderança.”

Embora o seu cargo na empresa não esteja relacionado com a área de diversidade, ela dá palestras, voluntariamente, em organizações de diversas partes do mundo para falar sobre a importância da inclusão de profissionais LGBT, especialmente transgênero, no mercado de trabalho. 

“Ter referências trans no corporativo era quase impossível há mais tempo. Na sociedade no geral, eu sempre me inspirei na Márcia Rocha (advogada trans e uma das fundadoras da Transempregos, plataforma de empregabilidade para transgêneros). Quando eu pensei ‘será que vai caber eu levar esse assunto ao mundo corporativo?’, ela era a única referência mais próxima que eu tive.”

Há 13 anos, quando entrou para a IBM, Adriana Ferreira foi contratada por uma gerente abertamente lésbica, o que ainda é raro no mundo corporativo. Durante os anos em que passou na empresa, em especial como head de Diversidade e Inclusão para a América Latina (cargo que ocupou até o começo do mês), ela preferiu a transparência total para trabalhar com os liderados: tanto sobre ser lésbica, quanto em querer intencionalmente contratar e desenvolver pessoas LGBT na empresa e no time.

“A gente não pode deixar ninguém para trás. Se eu cheguei na posição em que eu estava, na alta liderança em uma das maiores empresas do mundo, eu não posso esquecer que tem gente que não está seguro para estar aqui ainda, que não chegou, que não acredita. Então, tenho responsabilidade de passar a minha voz, do que eu sei, de onde eu cheguei, para as pessoas acreditarem que é possível.”

Adriana Ferreira

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Adriana ressalta que a responsabilidade não é apenas das lideranças LGBT, mas de todas elas. “As pessoas que não são LGBT e não conhecem a nossa realidade precisam se abrir para esse universo, se colocar à disposição como um líder inclusivo, autêntico e transparente, para criar um ambiente de trabalho seguro.”

Letramento e ações propositivas são necessários

Embora ser LGBT possa fazer com que os líderes consigam criar ambientes mais inclusivos, não é o suficiente para garantir uma liderança inspiradora e que dê conforto. O líder pode ser uma pessoa LGBT que não fale sobre o assunto, por exemplo, ou até mesmo pode falar, mas sem ser de uma forma propositiva.

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“Inspirar, motivar e mostrar que é possível é papel da liderança. Mas não existe um alinhamento automático. Não é porque você é LGBT que você tem consciência sobre essa temática. Ser um gay CEO é muito diferente de ser um CEO gay, porque exige consciência sobre o que é ser LGBT nessa sociedade. Eu, por exemplo, sou um CEO gay, mas também sou um gay CEO, no sentido de que a minha forma de liderar, de tomar decisões, é profundamente impactada pela pessoa que eu sou”, explica Ricardo Sales.

Foi a transformação pela qual passou recentemente Renato Camargo, diretor de marketing (CMO) da Recarga Pay. No ano passado, após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, houve um movimento nas redes sociais em que pessoas brancas emprestavam perfis para pessoas negras gerarem conteúdo sobre a pauta antirracista. Depois de participar da campanha, Renato percebeu que seu alcance no LinkedIn diminuiu drasticamente na semana em que seu perfil foi ocupado pela gerente sênior de riscos e controles internos da UnitedHealth Group, Viviane Moreira, mulher negra. A partir daí, ele decidiu que seu perfil seria dedicado ao debate da diversidade e inclusão e que, para isso, ele precisava falar abertamente sobre ser gay.

Renato Camargo, diretor de marketing (CMO) da Recarga Pay, passou a falar sobre diversidade e inclusão no seu perfil no LinkedIn. Foto: Recarga Pay

“Eu tomei a pauta aqui na empresa devido à minha senioridade e também porque eu tinha acabado de falar sobre isso em uma rede corporativa e recebi muitas mensagens de pessoas em posições mais júnior que me falaram que era importante saber que tinha uma pessoa gay ali”, conta. 

Motivado por esse retorno, Renato ressalta a importância da alta liderança se posicionar - caso esteja confortável em relação à sua orientação sexual e identidade de gênero e esteja em uma organização que dê suporte. 

“Se você já está no nível de alta liderança, você já construiu uma história e daqui para frente é muito mais sobre os seus valores do que efetivamente sobre você querer crescer a qualquer custo. Então, toma uma responsabilidade social. Você é um alto líder, devolva para o mundo o que ele te deu, se posicione, fale. Eu detesto aquela frase ‘ninguém precisa saber o que eu faço na cama’. Não é essa a questão. O ponto é o que você representa para muita gente que hoje apanha e morre no Brasil profundo por conta disso”, diz. 

Ao mesmo tempo em que se torna uma inspiração, também é preciso correr atrás de conhecimento para tal. “Esse papel vem com responsabilidade de reflexão para saber que a gente pode e deve ser uma referência, mas que essa referência seja muito responsável. Não é porque eu sou gay que eu vou ser uma referência na companhia. Para ser, eu tive que ler muitos artigos e blogs. Até hoje eu faço isso”, explica Renato.

Para Adriana, uma das ações mais importantes enquanto líder é ouvir as outras pessoas. “Eu me sento com as pessoas LGBT para ouvi-las, porque eu nunca parti do pressuposto de que, por fazer parte da comunidade LGBT, eu teria todas as ideias possíveis para desenvolver programas e atender a necessidade de cada um.”

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Interseccionalidades

Esse ponto de entender que as pessoas são diferentes e, com isso, possuem necessidades diversas, também é importante para se ter um retrato do que é a alta liderança nas organizações no Brasil. Se já é difícil encontrar pessoas assumidamente LGBT na alta liderança, é ainda mais raro ter profissionais LGBT e que também façam parte de outros grupos minorizados, como negros, mulheres e pessoas com deficiência (PCD).

Por isso, a presença de homens cisgêneros na alta liderança é maior do que a de mulheres cisgêneros, que por sua vez é maior do que a de pessoas trans. As primeiras letras da sigla LGBTQIA+ também são mais contempladas e não foi possível encontrar alta liderança que se identifique com outras letras, como interssexual (pessoa com características sexuais biológicas não associadas tradicionalmente a corpos femininos ou masculinos) ou assexual (quem sente pouca ou nenhuma atração sexual). A presença de pessoas brancas também é muito maior do que a de pessoas negras.

“As pessoas que contam com mais privilégios na sociedade chegam mais longe primeiro e isso acontece também dentro do movimento LGBT. Mas, nesse caso, privilégio não quer dizer que a vida de alguém foi fácil, quer dizer que não foi ainda mais difícil como seria em outro contexto. Não é fácil para um homem gay se assumir no mercado de trabalho, mas para outros recortes vai ser ainda mais desafiador. Machismo e racismo também se reproduzem dentro da comunidade. Houve avanços nos últimos anos, mas não na velocidade que a gente precisa e nem para todo mundo”, explica Ricardo.

Para o consultor de diversidade, a pesquisa deixa evidentes as diferenças entre as dificuldades vivenciadas pelas letras que compõem a sigla. Quando perguntados se pretendem mudar de emprego, 57% dos respondentes afirmaram que sim, 34% disseram que não e 9% afirmaram estar desempregados. Quando se olha apenas para os transgêneros, o número de desempregados aumenta para 25% e o de pessoas que pretendem mudar de emprego cai para 41%. 

“A não inserção da pessoa trans não começa no trabalho, mas no abandono escolar, na expulsão do seio familiar. Na hora em que ela chega ao mundo corporativo, ela precisa provar o espaço dela. Então, você começa com um nível de dificuldade afetiva e escolar e chega ao mercado de trabalho cheio de desvantagens”, diz Danielle Torres. “O homem gay cisgênero pode fazer uma entrevista se passando por heterosexual para conseguir o trabalho. Não que seja bom para ele, mas muita gente faz isso. Mas a pessoa trans, na maioria das vezes, não tem muita escolha.”

Para os especialistas, os avanços são inegáveis, mas é preciso que eles ocorram cada vez mais e com mais rapidez. “A gente não vai mais falar dos marcadores sociais de maneira isolada. A partir de agora, a questão é a interseccionalidade. É legal que haja empresas que entendam a questão de gênero, de orientação sexual e a racial, mas vamos precisar entender que uma mulher lésbica e negra é muito mais impactada que um homem gay branco, por exemplo”, acredita Renato. 

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