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'Estresse é natural, mas não podemos viver num estresse constante', diz psiquiatra

Médico Eduardo Tancredi fala sobre saúde mental e inteligência emocional no trabalho e na jornada empreendedora; veja dicas de como se cuidar mesmo quando não se tem vontade

Foto do author Ludimila Honorato
Por Ludimila Honorato
Atualização:

Autoconsciência das emoções é o primeiro passo para desenvolver inteligência emocional e estar com a saúde mental em dia. Isso é importante tanto para a carreira quanto para o empreendedorismo. Discussões e reflexões sobre esses temas fazem parte do bate-papo com o psiquiatra Eduardo Tancredi que ocorreu no último dia 4 no grupo do Estadão Carreira e Empreendedorismo no Telegram (clique aqui para saber mais).

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Durante a conversa, que contou com perguntas de integrantes da comunidade, o especialista explicou o funcionamento do cérebro humano, o que permite compreender o modo como respondemos emocionalmente às situações. "A maneira como a gente pensa pode mudar a maneira como a gente sente", disse ele.

O médico, que tem quase 30 anos de experiência clínica e é diretor-médico da eCare Group, atua também na promoção da saúde mental no ambiente empresarial e entre empreendedores. Ao mostrar que o estresse é natural e que o medo de perder é uma característica humana, ele ajuda a refletir sobre as formas como lidamos com determinadas situações.

No bate-papo, Tancredi deu dicas para promover carreiras e negócios com mais propósito, elemento que, segundo ele, guia as pessoas, mesmo quando não há vontade momentânea de fazer nada.

No player abaixo, ouça como foi a conversa. Você também pode ler as respostas do psiquiatra no texto logo abaixo.

 

Num cenário de instabilidade econômica e privação momentânea das relações cotidianas, como utilizar a inteligência emocional para que a saúde mental não seja afetada?

Primeiro, é muito importante entender que, na verdade, não existe um cérebro separado, não há um compartimento emocional e outro que é apenas racional. Nosso cérebro é um órgão muito complexo que funciona em conjunto. Mas, uma característica muito importante do nosso cérebro e que muitas pessoas acreditam o contrário, é que, apesar da gente achar que a gente é muito racional, na verdade a maior parte das nossas tomadas de decisão, das nossas percepções de realidade, são emocionais.

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Dentro desse contexto, um ambiente instável, uma das ferramentas principais é o gerenciamento emocional e isso é ter inteligência emocional. A primeira coisa é ter consciência de que emoções são normais, fazem parte da vida e são comportamentos que a gente tem no sentido de sobrevivência. O nosso objetivo aqui é nos manter vivos. Então, um primeiro passo para gerenciar as emoções é ter autoconsciência, entender o que está se passando, o que você está sentindo diante de uma determinada circunstância, ambiente ou situações e reconhecer que a gente reage emocionalmente às situações de estresse.

'A maneira como a gente pensa pode mudar a maneira como a gente sente', diz o psiquiatra Eduardo Tancredi, que fala da importância da autoconsciência das emoções. Foto: Deize Frances

Eu posso estar com medo, com raiva, com uma mistura de medo e raiva, posso achar as coisas injustas, posso ter uma série de emoções que estão me direcionando nesse exato momento. Uma dica muito importante de gerenciamento de emoção é entender que o nosso cérebro é feito para viver em sociedade, somos uma espécie colaborativa, nós precisamos ter relação com outras pessoas e uma das características importantes é você entender e utilizar a empatia.

A empatia é a gente conseguir entender o que o outro está vivendo e isso é importante porque é essa empatia que nos faz adotar essa compreensão do outro, faz com que a gente tenha um comportamento motivado para agir com compaixão pelas outras pessoas. Isso significa entender que elas estão passando por um problema e que a gente precisa ajudá-las de alguma maneira. E também ter autocompaixão, entender que nós estamos passando por esses momentos e que a gente também precisa nos ajudar.

Outro conceito importante é que nosso cérebro adota padrões automáticos, então a gente tem atalhos mentais, padrões mentais que estão influenciados pela nossa história. Isso vai influenciar na nossa relação com o meio, com as pessoas e com as situações. O estresse é natural, mas o que a gente não pode é viver num estresse constante. Então, aprender a lidar e gerenciar o estresse também é gestão emocional. A gente não pode mudar a realidade, não pode terminar a pandemia, não pode mudar o comportamento dos outros, mas a gente pode reavaliar a maneira como a gente enxerga. A maneira como a gente pensa pode mudar a maneira como a gente sente.

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Como conseguir se empoderar, ter coragem para trocar uma carreira estável e partir para um novo desafio em que nada é certo?

Vou começar respondendo essa pergunta com outra pergunta: O que é o certo? Onde a gente tem estabilidade? Talvez, o certo seja uma construção mental nossa de nos sentirmos seguros com algumas situações, mas a evolução da humanidade pressupõe enfrentar incertezas o tempo todo. No caso dos nossos ancestrais, eles saíram caminhando da África há cem, 200 mil anos atrás e sem certeza nenhuma do que iriam encontrar pela frente.

O empreendedorismo é uma característica humana. Claro que, num contexto atual, a gente tem as motivações para você empreender, uma delas é a necessidade. Então, por si só, a gente já não fala de uma situação estável, uma carreira estável. Mas, o empreendedor, por natureza, precisa em algum momento correr o risco de abrir mão das coisas. Mas também é uma característica humana ter dificuldade de abrir mão. A gente tem muita dificuldade de perder.

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Empreender é assumir o risco da perda, inclusive de ideias, pensamentos que a gente está acostumado. Alguns passos para desenvolver o empreendedorismo é, primeiro, uma motivação, um propósito, algo que saia do próprio interesse nosso e vá muito além. Aí, vem preparo, avaliação da situação, plano e colocar as coisas em prática. Mas sempre vamos viver na incerteza e, mais uma vez, eu pergunto: o que é certo? O amanhã não é certo. Na verdade, o amanhã está na nossa cabeça.

Diante dessas perdas, como se motivar a seguir em frente quando o plano é frustrado?

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Toda aposta tem um risco. O que a gente pode fazer é minimizar o risco com preparação. É você se preparar, saber para onde quer ir, ter esse propósito e, obstinadamente, preparar isso. As frustrações vão acontecer e elas dependem um pouco da maneira como você lida com o frustrar-se e tem a ver com a tua expectativa, com o tempo que você acha que vai conseguir as suas conquistas, as suas recompensas.

Vou dar um exemplo de avanço na medicina que aconteceu por causa de um erro: quando Alexander Fleming descobriu a penicilina, um antibiótico que revolucionou a medicina no tratamento das infecções bacterianas, foi por causa de um erro, ele falhou, ele teve um descuido e deixou contaminar uma placa e por acaso ele descobriu que os fungos que tinham nessa placa iriam conseguir matar as bactérias.

Então, a gente não pode ter medo de errar porque errar muitas vezes é a solução. Quando a gente tem uma ideia muito fixa e acha que ela vai dar certo é que, talvez, a gente aumente o risco de fracasso. O que faz uma equipe vencedora? Você vai sempre ter alguém que é o líder, que vai imaginar esse futuro, que vai assumir os riscos, vai representar o grupo nas falhas, mas que também tem outras vozes que seguram um pouquinho o líder para ele não avançar demais. Outra coisa é a diversidade de gênero, de geração e de ideias. Essa é uma fórmula de sucesso , mas empreender é correr riscos, não tem jeito.

Há alguma dica para ter motivação e fazer alguma coisa quando você não tem vontade de fazer nada?

A gente tem de tomar um pouco de cuidado para não confundir motivação com vontade. Vontade é um estado atual e é normal não ter vontades momentaneamente, você não precisa ter vontade de fazer tudo a todo tempo, mesmo que seja o trabalho. Mas acho que o maior problema é você não ter propósito. Quando você não tem propósito, seja no trabalho ou no teu próprio negócio, é um motivo de fazer uma reflexão e repensar mesmo o que você está fazendo para poder tomar uma decisão futura.

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Lembrando do tópico da estabilidade, que pode ser só relativa, você pode estar estável, mas numa situação ruim e, às vezes, a gente se acomoda com medo de mudar ou medo de eventualmente procurar um outro trabalho. Mas, resumindo, a gente não precisa ter vontade o tempo todo, é importante dar pausas. Se você vir que não consegue ter motivação o tempo todo, é o caso de procurar ajuda, porque pode ser que você esteja sofrendo uma depressão, por exemplo.

Agora, pensando pelo lado das organizações, como as empresas podem investir na saúde mental dos funcionários?

Esse é um dos grandes desafios corporativos que a gente tem no momento. As empresas precisam mudar, isso é uma questão de sobrevivência para elas. Quem não cuidar da saúde mental dos seus colaboradores corre o risco de desaparecer por uma série de motivos, mas, sobretudo, porque o ambiente é instável, a competição é muito grande.

O resumo do que precisa ser feito é uma mudança cultural em relação a saúde mental, que trabalhe o preconceito, em que a gente comece a falar que tudo bem falar sobre a saúde mental assim como é ok falar sobre a saúde física. O foco não pode ser a contratação de benefícios isolados, como temos visto. É importante ter esse tipo de coisa, mas não trabalhar a cultura da saúde mental dentro da empresa, na cabeça das pessoas, não vai dar certo. O principal é preparar as lideranças, seja qual for o nível em que estiverem. Elas são as pessoas-chave para começar essa mudança de cultura.

Há algo que os líderes possam fazer, no dia a dia de trabalho, para tornar o ambiente um pouco mais saudável para os funcionários?

Há uma matriz que divide essa questão da saúde mental em quatro pontos principais que o líder deve ser empoderado para trabalhar e direcionar a equipe. Primeiro, complacência com a neurodiversidade. A gente entende que existem condições neurodiversas que podem afetar a saúde mental das pessoas, como doenças diagnosticadas, sejam os transtornos de ansiedade, depressão, déficit de atenção. Um líder tem de entender e acomodar essa neurodiversidade em sua equipe, compreender limitações e características de cada pessoa.

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O segundo é mediar comportamentos discriminatórios. A gente sabe que muito do sofrimento mental vem dos comportamentos discriminatórios de raça, gênero e religiosos. O terceiro ponto é a gestão do estresse no ambiente de trabalho, identificar os estressores, como, por exemplo, tarefas e projetos de estresse alto, conflitos na equipe, micro-agressões, pessoas com linguagem estigmatizante.

O quarto é entender que cada pessoa tem uma situação. Existem pessoas que estão passando por problemas, seja uma pressão financeira, um momento de solidão e isolamento, esgotamento, situação de luto. Então, o líder deve enxergar essas pessoas de uma maneira diferente e tentar ajustar as exigências. Nós temos de trabalhar com um pouco mais de flexibilidade e esse é o papel do líder, ele influencia muito a sua equipe e precisa ser empoderado para agir.

E o que fazer quando se é líder de si mesmo? Para donos de negócio, lidar com saúde mental é mais complicado. Como manejar nesse cenário?

A responsabilidade pela saúde, seja física ou mental, é de cada um. Nós somos os responsáveis pela nossa saúde, então a gente não deve esperar dos outros, sobretudo numa situação em que não tem os outros. Aqui vão algumas dicas importantes, cientificamente comprovadas, para ajudar o cérebro e o corpo.

A primeira é a gestão de tempo, de rotina. O negócio depende de você, mas se você não estiver vivo e saudável, o negócio também vai afundar. Cuidar dos ritmos biológicos é importante também, então cuidar do sono - que não é perda de tempo, é ganho de tempo, de memória, desempenho e de vida -, cuidar da alimentação - pessoas que se alimentam mal atrapalham a microbiota e geram inflamação no organismo, o que gera estresse e piora a saúde mental - e fazer atividade física que, comprovadamente, melhora o ânimo, a vontade, a energia e a criatividade das pessoas.

Ter vínculos humanos, que são uma proteção para o cérebro. Ser otimista, porque o otimismo também é um fator de proteção cerebral, aprender coisas novas, uma língua nova, música, uma vez que isso cria reserva cognitiva. Outra dica são os exercícios de meditação.

É possível que a vida pessoal não interfira no negócio ou na carreira e vice-versa?

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Não é possível que uma área não interfira na outra e tudo bem, porque na verdade, da mesma maneira que eu falei que a gente não separa a saúde física da saúde mental, a gente não tem como separar a nossa vida em blocos. O que existe e ficou muito claro na pandemia e, sobretudo, para quem foi para o home office, é que houve um borramento dos limites entre vida pessoal e trabalho. É uma questão de gerenciamento do tempo, de espaço, colocar ordenação e definir qual é o tempo em que estou trabalhando e depois desligo para me dedicar às questões pessoais.

Como identificar que o estado mental e emocional começou a interferir nos negócios ou na carreira e vice-versa?

A primeira dica é olhar e saber se o seu negócio está indo mal. Se está indo bem, é muito provável que a sua saúde mental e emocional estejam colaborando para isso. Mas como identificar? Primeiro, é ter autoconsciência, saber olhar para você mesmo, interpretar as suas emoções, entender como está a sua relação com a tua equipe, com seus funcionários, seus colaboradores. Será que você está num nível de estresse elevado que pode estar transparecendo para as pessoas da sua equipe? Acho que a pergunta principal é: tem propósito? Você percebe propósito no que está fazendo? Porque o propósito é uma fonte, é onde você vai buscar recompensa para tudo que você está passando. No caso de perceber essas coisas negativas, é o caso de procurar ajuda psicológica ou médica.

Como tornar o ambiente de trabalho com mais segurança psicológica quando o discurso é lindo, mas a prática não existe? Falam de ‘respeitar os horários’, mas extrapolam horários, marcam muitas reuniões o dia todo.

Somos seres humanos, seres que temos emoções antes de poder interpretar o que é ação, interagimos com as pessoas, o trabalho em equipe. Tem de ter empatia, as pessoas precisam compreender umas às outras, e a empresa é um local de reunião de pessoas onde elas passam a maior parte do tempo e dedicam a maior parte da sua energia. A empresa que não transformar essa cultura e passar a olhar a saúde mental e emocional como algo valioso, vai desaparecer. Já a empresa que adota essa cultura não vai deixar as pessoas inibidas de estabelecer limites, de reclamar efetivamente, falar que não está a fim.

Individualmente, a gente tem de começar a se posicionar e, claro, se posicionar é assumir riscos, mas a vida é assumir risco. O que a gente não pode é se acomodar numa situação que está fazendo mal que, se a gente não tomar uma atitude, vai gerar um problema futuro. Nós estamos falando de saúde, de proteção do nosso sistema nervoso. Então, reavaliar o que vale a pena e o que não vale na vida é uma necessidade contínua. Se você está num ambiente que é tóxico, um ambiente que você percebe que não tem possibilidade de mudar, pense em mudar de ambiente.

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