23 de abril de 2021 | 09h00
Racismo estrutural, evasão escolar, crise laboral e lacuna digital. Essas são as quatro frentes de combate apontadas pelo estudo “Desafios e oportunidades para a inclusão produtiva dos jovens-potência na cidade de São Paulo”, feito pelo programa Global Opportunity Youth Network (Goyn), liderado pelo Instituto Aspen, em parceria com a Accenture Brasil, na busca de mitigar o abismo que separa jovens da periferia e seu imenso potencial produtivo e criativo de acessar o mercado de trabalho de forma competitiva.
Divulgada com exclusividade pelo Estadão, a iniciativa foi articulada pela United Way Brasil - organização de governança participativa que reúne 15 empresas e 3,5 mil pessoas físicas com a missão de criar oportunidades para as futuras gerações brasileiras. Por meio de um processo colaborativo que envolve organizações como Itaú Educação e Trabalho, Instituto Coca-Cola Brasil e Fiesp, o projeto mapeou o ecossistema da juventude periférica da capital paulista e sintetizou recomendações para apoiar a inclusão produtiva de mais de 700 mil desses jovens até 2030.
“Alguns países ainda vivem o final do bônus demográfico de ter uma grande quantidade de jovens e o Brasil é um deles”, explica Gabriela Bighetti, diretora executiva da UW Brasil. Ela fala que trabalhar na inclusão agora fará com que o País tenha uma situação completamente diferente em 10 anos. Os desafios, no entanto, exigem soluções sistêmicas e em escala. “São parafusos-chave muito complexos e poderosos em que precisamos mexer para a engrenagem funcionar”, avalia.
Segundo Bighetti, o racismo estrutural faz com que o jovem periférico não largue na mesma linha do que o restante. “Não existe meritocracia no Brasil e isso é algo estrutural que temos que combater”, sublinha.
Esse racismo não é denunciado apenas pelo cotidiano de violências instituídas contra pessoas negras, mas pelos números. Segundo o estudo, somente 34,3% dos jovens negros e 44,1% das jovens negras entre 18 e 20 anos completam o Ensino Médio em São Paulo, em comparação com 53,7% dos homens brancos e 62,6% das mulheres brancas. O privilégio branco na educação se perpetua no mercado de trabalho, onde apenas 4,7% dos executivos das empresas brasileiras são negros.
Agravada pela pandemia, a evasão escolar é outro ponto crítico. O estudo destaca que 26% dos jovens entre 15 e 29 anos da cidade não possuem instrução ou não completaram o Ensino Fundamental, 24% saíram antes do fim do Ensino Médio e apenas 13% cursaram o Ensino Superior. Entre os moradores das regiões periféricas das zonas leste e sul de São Paulo, onde vivem 70% desses jovens, a situação é ainda mais grave: menos de 35% completaram o Ensino Fundamental e apenas 4% fizeram Ensino Superior.
Afastados da sala de aula, sem apoio e com uma estrutura de ensino a distância deficiente, os alunos da rede pública enfrentam um quadro geral de desmotivação. “A distância entre o jovem que abandonou o Ensino Médio e as vagas de trabalho é enorme”, afirma a diretora. “Que revolução vai ter que acontecer na escola pública para corrermos atrás desse prejuízo?”, ela questiona.
A lacuna digital é mais uma preocupação. Quem vai gerar emprego no médio prazo é a economia digital - e o déficit de profissionais na área, que deve precisar de 300 mil novos profissionais até 2024, está fazendo com que empresas já olhem o problema de frente e invistam por conta própria na capacitação tecnológica de jovens, como já foi apontado pelo Estadão.
Sem conectividade, porém, muitos sequer têm conhecimento dessas oportunidades. Ainda de acordo com o levantamento, 42% dos domicílios paulistanos em situação de alta vulnerabilidade (825 mil moradias) não possuem banda larga fixa, restando apenas o acesso móvel, muitas vezes instável, e 39% dos alunos das escolas públicas não possuem tablet, notebook ou computador. “Essa conectividade que chega mais para uns do que para outros exclui ainda mais esses jovens”, diz Bighetti.
O projeto foi além de colher dados e evidências e dividiu a história em dois grandes grupos de soluções. No primeiro, mapeou iniciativas que já existem e investem no apoio a empreendedores da periferia para a periferia, na modernização do ensino, no acesso ao mercado para carreiras digitais e na infraestrutura de conectividade.
São exemplos como a ONG Gerando Falcões, o projeto de transformação tecnológica Meu Futuro Digital, a Agência Mural de Jornalismo nas Periferias, o coletivo de jornalismo Nós, Mulheres da Periferia e o Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).
No segundo grupo, foram reunidas 70 organizações para entender o que deve ser feito e criar novas soluções pensadas coletivamente. Para que esse brainstorming fosse direto ao ponto, no entanto, era necessário trazer o jovem para o centro da discussão. O Goyn selecionou 20 entre 200 candidatos vindos dos mais diferentes cantos da periferia paulistana para criar o Núcleo Jovem do projeto, que sentou e se organizou para falar do que eles realmente precisam, traçar estratégias e colocar as ideias em prática ao lado das organizações parceiras.
A partir disso, Gabriela Bighetti conta que nasceram protótipos que entram em ação ainda neste mês. “Vamos aprender, ver o que funciona, redesenhar o que for necessário e caminhar com eles em escala em 2022”, ela afirma.
São soluções como a Digitalis, plataforma digital que une jovens a ONGs que oferecem formação e empresas com vagas. “Não tinha ninguém fazendo essa curadoria”, conta a diretora. “É uma forma de recrutamento mais barata e eficiente e que elimina o desperdício de vagas.”
Para quem está ainda mais à margem do sistema e não sabe navegar na internet, foi criado o Perifa Digital. É uma espécie de mentoria em que os próprios jovens, remunerados pela iniciativa, vão trazer outros jovens - um vizinho, um amigo da escola, um primo - para fazer um processo de letramento digital.
E como as empresas são parte da solução, a Accenture fará uma pesquisa para levantar e estudar cinco organizações com bons casos de inclusão produtiva do jovem-potência. “A ideia é fomentar essa comunidade de práticas entre as empresas e mostrar o valor que esses jovens têm, quando se investe neles e são acolhidos de outra forma”, conclui Bighetti.
Para Diogo Tsukumo, gerente de articulação do Itaú Educação e Trabalho, a parceria em rede é o segredo para mudanças efetivas. “Ser parceiro institucional do Goyn SP é unir forças com uma rede de instituições e empresas que têm o objetivo comum de fazer um investimento nas juventudes e incluir os jovens no mundo de trabalho de forma digna”, diz o executivo.
“O estudo também deixou clara a importância da articulação em rede, que reúna várias esferas da sociedade, entre empresas, coletivos, universidades, o poder público e o próprio jovem, para romper a desigualdade estrutural.”
O termo jovens-potência foi ideia deles mesmos, segundo o estudante Lucas Gregorio, de 20 anos, que faz parte do Núcleo Jovem do Goyn. Morador da divisa de Taboão da Serra com o Campo Limpo, bairro periférico da zona sul de São Paulo, ele hoje está cursando o segundo ano de Letras na USP - onde entrou pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do Ministério da Educação, em que instituições públicas oferecem vagas a participantes do Enem.
“Queremos mudar esse cenário porque o jovem é muito potente e precisa trabalhar essa potência", completa ele.
Contratado como assistente do projeto há três meses, ele conta que sempre foi estudioso e “meio nerd”. No 9° ano, prestou o Vestibulinho e passou na Etec de Paraisópolis, onde começou a entender que sua realidade fazia parte de algo muito maior. “Minha consciência social foi aumentando, comecei a entender quem eu era, a olhar para as questões da minha comunidade e perceber como eu mesmo podia ajudar”, ele relata.
Com planos de se tornar professor universitário e empreender em um negócio de impacto social para complementar a renda, ele fala que ter os jovens como cocriadores é fundamental para mudar a mentalidade atual.
E deixa um recado às empresas: “Dar essa oportunidade é importante para a empresa e para a sociedade porque somos como um livro com páginas em branco, em que é possível escrever novas histórias”, reflete. “A gente pode mudar a realidade que existe hoje.”
Aos 22 anos, Estela Reis, moradora do Jardim ngela, também na zona sul paulistana, conta que conheceu a proposta do Goyn por meio da Escola de Notícias, iniciativa de jovens do Campo Limpo.
Aluna do curso de Direito na Universidade Anhanguera, onde ingressou com uma bolsa de 100% do ProUni (Programa Universidade para Todos), ela acredita que muitas empresas fazem coisas para os jovens, mas é difícil eles estarem de fato no meio da discussão.
“Eu conheci o projeto através de outro, mas a verdade é que eles não chegam com facilidade para nós”, explica a futura advogada, que pretende fazer pós-graduação e atuar ativamente na transformação de políticas públicas.
“Enfrentamos de tudo, dos problemas de ensino, saúde e violência à falta de acesso a cultura e lazer, então esses projetos precisam chegar também através das escolas e ONGs que estão nos bairros”, ela defende. “Tem que articular essa rede.”
Henrique Madeiros, de 20 anos, que vive no Grajaú, na zona sul, também é membro do Núcleo Jovem do Goyn. Para ele, falar da realidade do jovem periférico é como descrever um plano sequência, sem cortes. “Se não tive meus direitos respeitados quando criança, dificilmente vou ter uma inserção em qualquer área da minha vida”, ele alerta.
Rapper e poeta, Madeiros já publicou o zine Fúria, com poesias próprias, participa de saraus que debatem questões sociais da periferia e está à frente do projeto Grajauventude, que seleciona jovens artistas da região para gravar a primeira música em estúdio e distribuir a faixa em todas as plataformas possíveis.
Quando indagado sobre seu empreendedorismo artístico, ele corrige o termo: “O Tony Marlon (consultor em projetos de impacto socioambiental) fala em ‘CEO de MEI’”, ensina. “Hoje sou MEI (microempreendedor individual) para ter minha arte vinculada aos editais da cultura, para impulsionar a arte na periferia”, diz.
Para Madeiros, o papel das empresas no impulsionamento dos jovens-potência precisa ser sistêmico. “Tem também que sair do ritmo fordista para uma flexibilização do trabalho”, ele fala, revelando que no dia anterior trabalhou das 8h às 22h descarregando caminhão e chegou em casa à meia-noite para acordar novamente às 6h.
“Hoje acordei com tanta dor no corpo que essa é a única resposta que tenho. Precisa acabar com a animalização do trabalhador para que a pessoa também consiga pensar a arte.”
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