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Funcionários abrem mão de cargo de liderança em nome de outras prioridades

Pesquisa do Insper com a Robert Half aponta que profissionais evitam liderança por medo de afetar vida pessoal e dúvidas sobre própria competência; carreira em Y é saída

Por Marina Dayrell
Atualização:

Aos 56 anos, Anderson de Castro é servidor público do Judiciário em Minas Gerais. Concursado e já com oito anos de organização, ele não quer ocupar um cargo de chefia. O desejo da psicóloga Thiara Lima, de 35 anos, não é muito diferente. Há oito anos, ela trabalha em uma empresa privada, hoje como analista de recursos humanos. Thiara também não se vê, pelos próximos anos, construindo sua carreira rumo à liderança.

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Para Anderson, os principais empecilhos são acreditar não ter perfil de liderança e achar que um cargo como líder iria prejudicar o seu tempo para ficar com a família e se dedicar aos estudos de cinema. No caso de Thiara, a preocupação é não sobrar tempo livre para lidar com questões pessoais. 

Não almejar uma posição de liderança não é exclusividade desses profissionais, embora essa questão ainda possa ser um tabu no mercado de trabalho. Por isso, esse foi o tema de um estudo realizado entre o Insper e a consultoria Robert Half, para entender as preocupações das pessoas em relação à ascensão profissional. 

A pesquisa partiu de um dado, obtido em 2014, pela plataforma de empregos norte-americana Career Builder, que mostrou que, entre 3.625 profissionais de cargos e empresas diferentes, apenas 34% buscavam posições de liderança e só 7% queriam chegar a um cargo no C-level. 

Thiara Limatem construído sua carreira para se desenvolver como especialista e não como líder, buscando um equilíbrio entrevida pessoal e profissional. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

“Esses números nos chamaram atenção e, a isso, se adiciona o fato de que, quando falamos de carreira, a discussão é geralmente sobre o que preciso fazer para ascender, mas pouco se fala no sentido do que está impedindo as pessoas de quererem essa ascensão, o que pode se tornar barreira”, explica Tatiana Iwai, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Comportamento Organizacional e Gestão de Pessoas do Insper.

Os pesquisadores fizeram perguntas a 587 empregados de empresas privadas, com idades a partir de 20 anos e que ocupam cargos desde funcionário até líder de negócio. Constataram que, ao longo da carreira, os profissionais enfrentam duas grandes preocupações em relação aos cargos de liderança, uma sobre competência (relacionada à dúvida sobre estar pronto para o próximo nível e o medo de falhar) e outra sobre o equilíbrio entre vida pessoal e trabalho.

“Essas duas dimensões são diferentes, mas ambas afetam a motivação para ascender, e elas variam de acordo com o ponto em que o profissional se encontra na hierarquia. Em níveis mais baixos, ambas as preocupações são mais altas, quase no mesmo nível. Mas quando vai subindo na hierarquia, a preocupação com a competência diminui, provavelmente motivada pela alta eficácia, mas o receio de desequilibrar a vida profissional e pessoal segue alta”, explica Gustavo Tavares, pesquisador do Insper. 

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A vontade de equilibrar os dois lados da vida não é algo novo, mas, de acordo com dados levantados pelo LinkedIn na última semana, a pandemia intensificou esse processo. Entre os 1.160 entrevistados, 78% afirmaram que os dois últimos anos os fizeram perceber que querem e precisam trabalhar com mais flexibilidade. Cerca de 30% afirmaram já ter deixado seus empregos no último ano pela falta de políticas flexíveis e quase 40% já consideraram essa possibilidade em algum momento. O equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal também apareceu como a principal razão pela qual 49% dos profissionais buscam por vagas flexíveis. 

Competências para liderar

O estudo do Insper mostrou também que a intensidade dessas duas preocupações varia de acordo com os recursos psicológicos que o profissional possui, entre eles:

  • as habilidades humanas ou sociais, as soft skills (capacidade de lidar com outras pessoas de maneira afetiva, com boa comunicação, empatia, capacidade de influência, motivação e mobilização);
  • as habilidades cognitivas (inteligência geral, conhecimento, capacidade de resolver problemas, pensar em soluções criativas e interpretar cenários complexos);
  • a resistência psicológica (resiliência e estabilidade emocional do indivíduo diante de situações de pressão e estresse).

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“As competências humanas e resistência psicológica ajudam a reduzir as preocupações que as pessoas têm sobre competência e também ajudam a reduzir os receios de equilíbrio entre vida pessoal e trabalho. É como se a resistência psicológica fosse a ‘casca dura’ da pessoa para conseguir lidar com os vários desafios que vão surgir ao longo da vida profissional”, conta Tatiana.

Essa carência é uma preocupação que atinge não só os profissionais que não querem ser líderes, mas também quem já ocupa um cargo de liderança. Ao longo de seus anos de experiência como mentora de líderes e especialista em neurociência do comportamento, Marcia Gonçalves percebeu que a carência dessas habilidades, geralmente, leva à angústia e à vontade de desistir do cargo.

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“Eu recebo muitas queixas de líderes por conta do que é exigido. Para liderar e entregar resultado, você tem que ter expertise para lidar com relações humanas e suas complexidades. Há muitos que ascendem de forma muito ingênua e sem experiência de gestão de pessoas, então eles falham e aí vêm a angústia e a impaciência”, explica.

A especialista acredita que qualquer profissional pode desenvolver o tão falado perfil de liderança, mas isso não significa que todo mundo que é promovido a líder já possui essas habilidades. “Quando a pessoa é promovida sem ter um preparo, apenas porque entregou o trabalho, ela acaba não desenvolvendo essas habilidades, o que faz com que ela se questione e pode até desistir de ser líder.”

Visão distorcida do posto de liderança

Falar sobre não querer alcançar um posto de liderança ainda é um tabu porque, no geral, o mercado de trabalho e os próprios profissionais entendem a ascensão à liderança como a constatação de que uma carreira é bem sucedida. 

“Existe o profissional que pode até ter o desejo de ser líder, mas ele tem mais a ideia de que, se não for líder, não está crescendo na carreira, que está estagnado, do que ver a liderança como algo que ele quer e que saiba o que é. A consequência é uma visão distorcida do posto de liderança e isso pode culminar muitas vezes na desmotivação do profissional a querer esse cargo”, explica Mário Custódio, diretor da área de recrutamento executivo da Robert Half, que também realizou a pesquisa ao lado do Insper. 

Qualquer profissional pode desenvolver perfil de liderança, mas não significa que quem é promovido a líder já possui essas habilidades, dizMarcia Gonçalves. Foto: Le Spezani Photography

Para o profissional que não quer um cargo de liderança, o primeiro passo, segundo os especialistas, é buscar o autoconhecimento, por mentorias, capacitação e pelo processo terapêutico. Ganhar consciência sobre as razões pelas quais uma pessoa não quer ser líder e de onde essas preocupações vêm ajuda a entender se elas são reais e se há algo que possa ser feito para reduzi-las.

No caso de quem passou por esse processo e tem certeza de que realmente não quer liderar uma equipe, os especialistas aconselham a ser honesto com a empresa e com o líder direto, mas também é importante, primeiro, entender se a cultura empresarial daquele ambiente permite que o colaborador fale sobre isso.

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“É bom fazer uma análise para entender se tem espaço naquela empresa para crescer como especialista, no nível técnico, sem se tornar líder. Talvez, até caiba a pergunta para o líder direto, deixando claro que quer continuar crescendo como especialista na organização, mas sem necessariamente ter uma equipe abaixo”, aconselha Mário.

Carreira em Y

Do ponto de vista das empresas, há um leque de possibilidades, que começa por oferecer a oportunidade de carreira em Y — modelo de plano de carreira em que o funcionário, além de ter a opção de crescer para cargos de gestão, também pode ascender para cargos técnicos e de especialista.

Com isso em mente, a MAG Seguros, empresa em que Thiara Lima (que aparece no início desta reportagem) trabalha, criou dois programas de desenvolvimento profissional. O primeiro é focado nas pessoas que têm vontade de liderar, mas ainda não tiveram essa experiência. O outro é focado na segunda bifurcação da carreira em Y, as pessoas que não querem ser líder, mas querem crescer profissionalmente como especialistas. 

“O mercado foi evoluindo do modelo de carreira linear, de que as pessoas só iam crescendo ao atingir cargos de liderança. A gente passa a ver que a evolução é a carreira em Y. Quem não tem vontade de seguir numa carreira de gestão de pessoas, pode seguir numa carreira mais técnica, de especialista. O profissional especialista precisa saber que ele também é vital para a empresa. Imagina se todo mundo nas empresas fosse liderança?”, diz Vanessa Joannou, gerente de atração de talentos e carreira.

Para Thiara, o principal benefício é poder ter opções e até mesmo mudar de ideia lá na frente. “Não quer dizer que por ter uma carreira em Y a pessoa não quer a liderança, muitas vezes ela não tem a vocação ou naquele momento não está preparada para isso”, diz. 

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