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Funcionário orienta líder em mentoria reversa para fortalecer inclusão

Profissionais dividem experiências de grupos minorizados com apoio da empresa para gerar inovação e engajamento; resultado se reflete em projetos e pressiona líderes a pensar sobre privilégios

Foto do author Ludimila Honorato
Por Ludimila Honorato
Atualização:

Dentro de uma empresa, a mentoria pode ser comumente associada a um trabalho de orientação profissional que vai de cima para baixo, do executivo mais experiente ao funcionário iniciante. Mas, em uma lógica horizontal, colaboradores também assumem o papel de mentores e dividem com as lideranças experiências pessoais e propostas que podem ajudar o negócio. A pauta de diversidade e inclusão é latente e os resultados dessa mentoria reversa aparecem em forma de novos projetos, produtos e perfil de contratados.

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Por uma iniciativa interna, a L’Oréal Brasil implementou, em maio de 2020, um programa de mentoria focado em letramento racial que ocorre em duas frentes. Na tradicional, líderes estimulam o desenvolvimento de competências dos funcionários negros e fomentam o senso de pertencimento. Na outra, as lideranças são sensibilizadas por colaboradores negros quanto às questões raciais, invertendo a lógica do aprendizado.

Cristina Garcia, de 47 anos, diretora de comunicação científica da empresa, conta que já vinha acompanhando as ações internas de diversidade e inclusão (D&I), que a ajudaram a “abrir os olhos” para vieses inconscientes e situações em que não sabia como agir. Quando viu a chance de receber uma mentoria sobre o tema, aproveitou. “Foi a oportunidade de ter uma conversa personalizada, perguntar diretamente, fazer conexão com a pessoa que pode me dar a visão dela”, diz.

O “match” foi com a mentora Lívia Ferreira, de 29 anos, analista de laboratório e co-líder da Rede de Afinidade Racial da L’Oréal. “A experiência é extraordinária porque é um momento de construção. Por mais que a mentoria tenha ideia de ser vertical, a gente trabalha na horizontal e tem o papel de construir um espaço seguro e personalizado”, conta.

Lívia Ferreira (esq.) é mentora de Cristina Garcia dentro do programa de mentoria reversa da L'Oréal. Foto: Wilton Junior/Estadão

A personalização a que elas se referem tem a ver com a dupla escolher e discutir assuntos pertinentes à área de atuação de quem recebe a mentoria. As pessoas envolvidas apresentam suas propostas e demandas, trabalham nas divergências e quebra de estereótipos e criam juntas um debate produtivo.

“Deixamos livre para a dupla se conhecer e entender o nível de conhecimento de cada um. Tem dupla que fala de produto, consumidor, tem dupla que quer só histórias do Brasil ou de fora. Mas vai do acordo no início para dizer o que quer aprender”, explica Renata Dourado, diretora de diversidade e inclusão da L’Oréal Brasil. Segundo ela, em torno de 25 pessoas do alto escalão estão envolvidas na ação, incluindo o presidente.

Já a farmacêutica Sanofi, que implementou um programa de mentoria reversa em 2017, agora trabalha com um modelo global mais flexível. Por meio de uma plataforma, qualquer pessoa pode se candidatar como mentor ou buscar mentoria. “Na plataforma, tem ferramentas, guias de boas práticas para ajudar a dupla no programa. É dinâmico”, comenta Neila Lopes, head de diversidade e inclusão da companhia. Entre 2020 e 2021, 269 relações de mentoria tiveram início e 182 estão atualmente ativas.

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Como esse modelo está mais conectado às políticas gerais de D&I da empresa, são variados os temas abordados. “Um dos nossos pilares é ‘gerações que encantam mais’. A gente abre possibilidade de as pessoas mais experientes trazerem a visão delas, serem mentoras. E tem um projeto piloto em parceria com a TransAção em que cinco estagiários da Sanofi mentoram pessoas transgênero com foco na inclusão delas no mercado. Quando fala de 50+, tem parceria com a Labora, que também traz pessoas 50+ para trabalhar na Sanofi que vão dar e receber mentoria.”

Referência em mentoria reversa

Desde 2012, a IBM Brasil desenvolve mentoria reversa nas frentes LGBT+, mulheres na tecnologia, afrodescendentes, pessoas com deficiência e pessoas de outros países e culturas. Cerca de 250 líderes já passaram pelo processo, que é citado como uma das melhores estratégias de D&I no Guia de Diversidade da Great Place To Work, que reúne as boas práticas do mercado de trabalho.

Stephanie Stolfo, líder de D&I da IBM América Latina, conta que o foco da dinâmica é a troca de experiências, dentro e fora do ambiente organizacional, como conquistas, desafios, carreira e dia a dia como pertencente a um grupo minorizado. Quem dá a mentoria também faz parte dos grupos de afinidades da empresa, formados por funcionários voluntários.

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“Os mentores se beneficiam, uma vez que podem compartilhar e ouvir a história de outros colegas, enquanto os líderes têm a oportunidade de conhecer situações que os colaboradores enfrentam em suas vidas. É uma oportunidade para que os executivos possam refletir sobre sua atuação como agentes de transformação da cultura organizacional”, ela diz.

Mentoria impacta em novos produtos e novas estratégias

Neila Lopes afirma que democratizar o conhecimento é um dos principais ganhos da mentoria, além de promover o protagonismo e ampliar a consciência coletiva quando se fala de diversidade e inclusão. Uma pesquisa feita pela Sanofi neste ano com funcionários de diferentes níveis hierárquicos mostrou que, entre 1.522 respondentes, 98% afirmam perceber o tema de D&I na agenda corporativa - três pontos porcentuais acima do registrado em 2020.

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Essa maior consciência se reflete em produtos e ações. A Medley, unidade de negócio da farmacêutica, lançou neste ano o projeto Conta, Mana, focado em conscientizar as mulheres sobre a importância do bem-estar e autocuidado. “Quando fomos fazer a pesquisa para colocar o projeto de pé, escutamos mulheres em toda sua riqueza de marcadores identitários: preta, periférica, branca, trans. Levar mentoria de D&I para os líderes de negócio impacta nas iniciativas que são feitas”, diz.

Neila Lopes, head de diversidade e inclusão da Sanofi, avalia que um dos principais ganhos da mentoria é a democratização do conhecimento. Foto: Divulgação Sanofi

Na L’Oréal, Renata Dourado também vê uma sensibilização geral da companhia, bem como os resultados concretos. Neste ano, 43,2% das contratações foram de pessoas negras, ante 24,8% no ano passado. Além disso, quatro produtos específicos para consumidores negros foram lançados em 2021, feitos em parceria com o conselho consultivo da Rede de Afinidade Racial.

Para Lívia Ferreira, além da oportunidade de se conectar com as pessoas, o programa da L’Oréal Brasil ajuda a aprimorar as soft skills dos mentores, como comunicação e storytelling. E como o nível de letramento de quem dá a mentoria também é variado, as trocas entre eles contribuem para o desenvolvimento pessoal e profissional.

Carine Roos, CEO e fundadora da Newa Consultoria, considera que a mentoria reversa é “o modelo ideal para furar a bolha” das lideranças, o que se mostra desafiador. “Tem sido um choque cultural e o que eu mais ouço delas sobre os aprendizados é: ‘passei a refletir mais sobre os meus privilégios’. Esse é o futuro dentro das organizações, ter abertura da liderança para aprender”, diz.

Como fazer a mentoria reversa

Para que a mentoria funcione, diz Roos, é primordial estabelecer os objetivos dela, orientar e treinar as pessoas envolvidas. “Se a liderança não estiver engajada para reconhecer padrões de vieses, não é efetivo.” Já com os funcionários mentores, a proposta é desenvolver a autoliderança e autoconfiança, pois “grupos minorizados tendem a ter dificuldade de se apropriarem de suas competências”.

Além disso, é preciso desenvolver uma estratégia para falar de D&I com a lente do mercado, aponta Neila Lopes, segundo quem uma boa mentoria une conhecimento, vivência individual e números. “Para sensibilizar um executivo sobre raça e etnia, vale dizer que empresas que investem nessa diversidade podem ter ganho financeiro de 30% ou pode trazer informação do poder de compra da população negra, que é 56% dos brasileiros”, exemplifica.

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Roos destaca que a formação da dupla tem de ser estratégica e feita pela organização, depois de entender o nível de letramento das partes. Entre os artifícios usados pela especialista em suas consultorias estão uma avaliação antes e após o processo, e uma ferramenta comportamental que avalia a personalidade da pessoa. “A gente consegue que tanto líder como liderado tenham acesso à visão um do outro, o que é legal para a desconstrução de padrões. Se antes via a pessoa como tímida, introspectiva, vai saber que, na verdade, ela é mais analítica, estratégica”, comenta.

Por fim, ela destaca que a mentoria deve ser baseada num espaço de segurança psicológica. De um lado, a liderança precisa estar confortável para ser vulnerável e reconhecer erros. Do outro, o funcionário deve se sentir seguro para dar retornos a alguém que está num nível acima. “Por mais que tenha hierarquia na empresa, ela não deve existir no processo de mentoria, é um ambiente de horizontalidade.”

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