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Inclusão racial em três atos: o recrutador, a multinacional e a estagiária

Plataforma de recrutamento Empodera, criada por Leizer Pereira, ajuda empresas como Google a fazer inclusão de profissionais negros no mercado; conheça as histórias

Por Iolanda Paz
Atualização:

As noites de sono de Leizer Pereira, de 47 anos, não eram tão tranquilas em 2014. Mesmo depois de chegar a cargos de liderança, Pereira sentia que faltava algo. O executivo não se contentava em ser um exemplo fora da curva de profissional negro bem-sucedido na carreira. Do incômodo, partiu para o questionamento sobre o que poderia fazer.

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O ponto de chegada dessa jornada foi a criação da Empodera, uma plataforma que oferece consultoria especializada para o recrutamento de candidatos negros, LGBTQIA+, mulheres e pessoas com deficiência. Hoje, o empreendedor faz parte da transformação da vida de milhares de jovens, como Fernanda Mariano, de 24 anos. O ano é 2021 e uma estagiária negra virou coordenadora de marketing do Google Brasil.

"Entrei no Google com a minha família inteira", conta Fernanda. "Eles vivem esse sonho junto comigo." Ainda que lentamente, o mercado de trabalho vem dando passos rumo à equidade racial, graças a iniciativas que visam ao aumento da representatividade de profissionais negros. É o caso do Next Step, programa de estágio do Google com duração de dois anos que é focado na inclusão e no desenvolvimento de estudantes negros. Mas nem sempre foi assim. E as empresas que hoje têm programas de diversidade precisaram de ajuda para criá-los do zero, contratando consultorias como a Empodera. "Nós somos construtores de pontes", define Pereira. 

Fernanda Mariano, que fez Administração na USP, estagiou no Google Brasil e agora é coordenadora de marketing da empresa. Foto: Léo Souza/Estadão

Leizer Pereira cresceu em uma família pobre na periferia do Rio de Janeiro. Filho de professor, aprendeu desde cedo a valorizar a educação. "Os livros me salvaram, eu virei um rato de bolsas", conta. Depois de estudar em escola pública, sua trajetória profissional começou com um curso técnico de eletrônica, passou por uma faculdade de Engenharia de Telecomunicações e chegou a grandes empresas como Embratel e Cisco. Homem negro, conseguiu se tornar um executivo da indústria de TI. "Apesar do Brasil e da falta de oportunidades, eu venci." 

Mas Pereira percebeu que só isso não era suficiente. Com 20 anos de carreira, passou a sentir um incômodo, achava até que estava ficando doente. Fez exames e não tinha nenhum problema. Enquanto isso, em viagens a trabalho para os Estados Unidos, ouviu falar da cultura norte-americana do “give back”. "Se eu sou um vitorioso, tenho que dar de volta para a sociedade porque me sinto grato.” Foi quando o executivo começou a ter pistas do que poderia estar acontecendo.

Em 2014, por meio de um coach de carreira, ele descobriu que também tinha aptidão para as áreas de educação e política. "Eu precisava fazer trabalho voluntário pra não ter um infarto", brinca. O lado social começou a ser colocado em prática na Educafro, uma rede de cursinhos pré-vestibular focada no acesso de jovens de baixa renda – especialmente negros – ao ensino superior. “Sentia mais prazer na ONG do que no meu trabalho”, lembra.

Coca-Cola pede ajuda para programa de trainee

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O passo para virar empreendedor veio quando, em 2015, a Coca-Cola bateu na porta da Educafro pedindo apoio para seu programa de trainee. A multinacional tinha constatado que nunca havia contratado um candidato negro. "Foi aí que eu tive uma sacada: se a Coca-Cola está pedindo ajuda da ONG para ampliar sua consciência sobre a questão racial e recrutar jovens, é sinal de que nenhuma empresa sabe fazer isso", conta.

Leizer Pereira, que fundou a Empodera em 2016 para ajudar estudantes e futuros profissionais negros e de baixa renda no mercado de trabalho. Foto: Léo Souza/Estadão

Quando topou ajudar a Coca-Cola divulgando o processo na Educafro, Pereira identificou que também seria necessário preparar esses candidatos e estruturar os currículos adequadamente. "A primeira pergunta que me fizeram foi o que era um programa de trainee", conta. Decidiu, então, dar treinamento na Educafro.

Por um período de 10 sábados, Pereira e profissionais convidados ensinaram os jovens a se expressar em entrevistas, montar currículo, fazer pitches, dentre outras habilidades. Cerca de 50 candidatos da Educafro participaram do trainee da Coca-Cola e uma das jovens tinha sido contratada. "Desliguei o telefone (com a notícia) e comecei a chorar", conta. "Pude ser um instrumento para transformar a vida dessa mulher negra que, instantaneamente, virou classe média e levou os pais junto."

Em 2016, o executivo coloca de pé o seu negócio de impacto social com duas frentes. A primeira tem foco nas empresas, com serviços de consultoria para programas de diversidade e inclusão, com metas e treinamentos para as lideranças. A segunda é focada nos candidatos, já que a Empodera também funciona como uma plataforma gratuita de educação e conexão profissional. "Mais do que só selecionar ou recrutar, queremos desenvolver essa turma para conectar com o mercado." 

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Hoje, a Empodera tem 60 mil jovens cadastrados e soma mais de 1.500 estagiários e trainees contratados em empresas como Ambev, Santander, Bayer e outras. Mesmo em um ano pouco favorável para a economia brasileira, a plataforma cresceu 200% e pretende fechar 2021 faturando R$ 3 milhões. Para ele, com a crescente discussão sobre diversidade e inclusão no mercado de trabalho, o potencial para crescer é grande. "Precisamos que mais empresas se engajem e acelerem esse processo."

O Google e a promoção da inclusão no mercado

Dentre os clientes da Empodera está o Google Brasil, que, em 2019, estruturou seu primeiro programa para estagiários negros. Denominado Next Step, o projeto tem como objetivo promover a inclusão racial e o desenvolvimento dos estudantes durante dois anos de experiência profissional. Para a entrada dos candidatos na empresa, o primeiro passo foi eliminar a barreira do inglês fluente – levando em conta que apenas 5% da população brasileira afirma ter algum conhecimento do idioma, de acordo com levantamento do British Council. Nesse cenário, a multinacional entendeu que a melhor estratégia seria proporcionar aulas de inglês posteriormente, para os selecionados. 

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Ex-estagiária da primeira turma do Next Step, Fernanda Mariano conta que tinha aulas de inglês duas vezes por semana, além de almoços no idioma com Googlers (funcionários do Google). "De toda a experiência no estágio, foi a que mais gostei. O inglês é uma herança que sempre vai estar comigo". A atual coordenadora de marketing lembra também que seu chefe costumava desafiá-la a treinar suas habilidades no idioma. "Entrei no Google sem saber falar inglês e consegui atingir a fluência em dois anos."

Bonequinhos do Google na casa de Fernanda Mariano; além do 'Day at Google', quando candidatos passam um dia na empresa, grupo de afinidade Afro Googlers ajudam futuros colaboradores a se guiarem na empresa. Foto: Léo Souza/Estadão

A inscrição para o Next Step foi feita na plataforma Empodera. Além disso, o Google contratou serviços relacionados à primeira etapa do processo, como divulgação para universitários negros, pré-seleção dos candidatos e treinamento para as entrevistas. Uma das ações para preparar os jovens foi o Day at Google: um dia em que os candidatos passaram com funcionários no Google para conhecer a empresa. "Só de ter ido lá e almoçado com aquelas pessoas já tinha valido muito a pena", conta Fernanda. 

Segundo Lia Romano, gerente de programas de estágio do Google, o sucesso do Next Step está relacionado a um trabalho de desenvolvimento dos estagiários apoiado em três mentorias: funcional, cultural e por demanda. A primeira era dada por um especialista que trabalhava no dia a dia com o estagiário e dizia respeito ao desempenho de sua função. A segunda era oferecida pelos Afro Googlers, colaboradores que se autodeclaram negros e que ajudavam a turma a se aculturar dentro da empresa. Já a terceira era realizada de acordo com as necessidades dos estagiários.

Se a turma do Next Step sentisse que precisava de um treinamento de organização, por exemplo, o Google oferecia workshops sobre o tema. "Fazíamos pesquisas a cada três meses para medir a temperatura e identificar como estavam as demandas", conta Lia. "Nosso objetivo era que eles se tornassem profissionais completos ao final do programa de estágio". 

Com uma turma de 21 estagiários, a primeira edição do Next Step terminou em agosto deste ano. Segundo o Google, a grande maioria deles foram efetivados e estão trabalhando em diferentes áreas da companhia. "A longo prazo, o objetivo do programa é transformar a nossa força de trabalho no que é a representação da população brasileira, aumentando a inclusão de pessoas negras.” Em 2022, começa a segunda edição do Next Step.

Dentre os ex-estagiários efetivados está Fernanda Mariano. Com nove irmãos, a jovem fez cursinho com bolsa e conseguiu entrar em Administração na USP em 2016. “Toda minha família se mobilizou para eu poder realizar esse sonho.” Fernanda viu o debate sobre inclusão racial aumentar durante sua passagem pela universidade. “Foi no meu segundo ano que a minha faculdade, a FEA-USP, começou a aceitar cotas.”

Agora coordenadora de marketing do Google Brasil, ela se vê na responsabilidade de representar não somente sua história e família, mas também outros jovens negros, fomentando a discussão sobre inclusão no mercado de trabalho. “Percebo que consigo ser um exemplo. Meus irmãos passaram a ter outra perspectiva para sonhar.”

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Para a jovem, é um avanço que as empresas tenham começado seus processos de inclusão de profissionais negros, mas Fernanda acredita que ainda há muito a percorrer até a equidade racial. “Entrar é uma parte importante, mas manter a pessoa dentro do mercado e dar condições iguais para ela aproveitar a oportunidade são os passos em que temos que pensar agora.”

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