Inglês como nota de corte reforça desigualdades entre candidatos

Empresas como Ambev, Coca-Cola e Basf adotam iniciativas para inclusão de profissionais sem base do idioma; mercado vê movimento que privilegia soft skills, as habilidades comportamentais

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Por Bruno Luiz
Atualização:
5 min de leitura

Renata, Tattiane e Bárbara se encontram na exclusão. O inglês, considerado fator de conexão das pessoas ao mundo globalizado, quase as colocou à margem do mercado de trabalho. Sem domínio da língua, elas foram reprovadas em diversas seleções de emprego, que privilegiavam o idioma em detrimento de outras habilidades

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Negras, periféricas e sem condições financeiras de investir no inglês, elas viveram o drama de quem é excluído do mercado por um critério que se torna uma “nota de corte” de classe e de cor. Para tentar reparar essa desigualdade social, empresas adotam iniciativas para deixar os processos seletivos com mais diversidade e inclusão, mas precisam avançar nas ações, avaliam especialistas.

Bárbara Tayná, de 26 anos, participou de 17 seleções de estágio apenas no segundo semestre do ano passado. Foi reprovada em 16 porque não sabe inglês. O pouco que sabe do idioma aprendeu na rede pública de ensino, onde estudou. Recebeu aprovação apenas na última seletiva, em dezembro, que não exigia o idioma. Hoje atua na área de marketing da empresa, que montou uma plataforma online de ensino da língua para funcionários.

A estudante de Relações Públicas critica empresas que querem adotar iniciativas de diversidade racial, mas não percebem como o idioma pode dificultar a vida de pessoas negras e periféricas, que, historicamente, têm menos acesso a uma educação de qualidade.

Com a pandemia, a desigualdade racial no mercado de trabalho bateu recorde. Enquanto o desemprego atingiu 15,8% entre pretos e pardos em junho de 2020, entre brancos, amarelos e indígenas ficou em 10,4%, maior diferença desde 2012, segundo dados da Pnad contabilizados pela consultoria LCA.

“Uma empresa que se diz diversa deve entender onde o público diverso vive. A maioria da população negra não tem inglês. Se você quer aumentar a equidade racial na sua empresa, você tem que saber o dia a dia do povo preto que se candidata”, reivindica Bárbara. 

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Tattiane Cruz, que só conseguiu estudar inglês após receber bolsa de uma empresa onde trabalhou. Foto: Felipe Rau/Estadão

Tattiane Cruz, de 37 anos, conta que já chegou a ficar entre os dois finalistas de uma seleção, mas, no fim das contas, perdeu a vaga porque o concorrente tinha um inglês melhor. “Eu me sentia parcialmente desvalorizada. É como se toda a sua história, suas fortalezas não fossem consideradas na sua plenitude”, lamenta. 

Hoje atuando como scrum master de projetos e inovação em uma indústria de cosméticos, ela lembra ainda que, apesar da exigência, o uso do idioma não é necessário no dia a dia para grande parte das funções. 

“Às vezes, eu achava estranho porque um colega da minha classe era aprovado e, quando a gente falava do nível de inglês, o nosso nível era o mesmo”, relata ela, que acredita que o inglês acaba sendo um critério das empresas para criar barreiras de acesso a pessoas negras.

Cotas de diversidade e inclusão

Vontade de estudar o idioma não faltou para Tattiane. O que estava em falta mesmo era dinheiro da família para pagar cursos. Ela só conseguiu estudar inglês após receber bolsa de uma empresa onde trabalhou. Depois de se formar, passou dois meses fora do País, onde aprimorou seus conhecimentos na língua, e também pagou aulas particulares.

A barreira do inglês não vai encontrar pessoas negras apenas em cargos iniciais, mas em postos de liderança também. Renata Hilário, especialista em insights de uma cervejaria, reclama que a exigência dificulta ainda mais a presença de não-brancos em posições de chefia. No Brasil, mulheres negras ocupam apenas 8% dos cargos de liderança, segundo pesquisa feita no ano passado pela consultoria Indique uma Preta e pela empresa Box1824.

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“Para cargos de liderança, já pedem um inglês mais avançado. Você já faz entrevista em inglês no processo seletivo online ou presencial”, critica ela, que ironiza que “nosso Brasil é com z, não com s”, em referência à escrita de Brasil em inglês. “Nos pautamos sempre pelos norte-americanos. A gente tem competência, mas é barrado porque não tem inglês fluente, não fez intercâmbio.”

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Chefe de Cultura Inclusiva da 99jobs, Fábio Mariano explica que a exigência do inglês para o trabalho se consolidou na segunda metade da década de 1980, quando multinacionais se instalaram no Brasil a partir da reabertura política. Com isso, as empresas convencionaram um perfil a ser preenchido pelos funcionários.

“Era preciso vir de faculdades de primeira linha, ter alguma vivência no exterior, então começou a se privilegiar pessoas com intercâmbio, que já tivessem viajado várias vezes para fora do País. Além de tudo isso, a exigência em inglês. Assim, só uma elite vai ocupar cargos de liderança em empresas”, destaca Mariano.

Renata Hilário reclama. “De 10 palavras que as pessoas falam (na empresa), cinco são em inglês. Isso é muito excludente. As empresas querem mais pretos no seu time, mas elas promovem um ambiente seguro psicologicamente quando a gente entra? Eu acredito que não.”

Segundo Eduardo Migliano, cofundador da 99jobs, de 2019 para 2021, cresceu de 5% para 40% o porcentual de empresas que pedem medidas de diversidade e inclusão nos processos seletivos organizados pela startup. “O conceito de reparação é muito mais amplo que diversidade e inclusão. Empresas que trazem palavras como meritocracia para seus processos obviamente não cabem mais no contexto atual”, diz.

Curso de inglês e soft skills

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Para evitar que o inglês seja elemento excludente, empresas têm abolido a exigência de processos seletivos ou custeado cursos para os funcionários aprovados. A Ambev, por exemplo, retirou a necessidade do idioma de uma seleção iniciada no mês passado para mulheres e pessoas não brancas na área de tecnologia da informação (TI).

Já a Coca-Cola vai pagar curso de inglês para os selecionados no programa de estágio da multinacional, aberto no início do mês. A Basf resolveu criar uma plataforma de autoaprendizagem da língua para auxiliar aqueles que forem aprovados na sua seletiva de estágio, voltada para negros, pessoas com deficiência e pessoas transexuais.

Outra tendência é a aposta cada vez maior das empresas nas chamadas soft skills (habilidades comportamentais), em detrimento de qualificações como o inglês. Segundo levantamento realizado pela Revelo, organização de tecnologia para recursos humanos, comunicação assertiva, aprendizagem contínua, autogerenciamento, capacidade de resolução de problemas e relacionamento interpessoal foram as características mais procuradas pelas empresas no ano passado.

Coordenador de Direitos Humanos do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree), Yuri Silva acredita que critérios considerados objetivos, como formação acadêmica e fluência em inglês, acabam produzindo como resultado a exclusão. “Eles classificam por classe, raça, gênero, promovem a pausterização do processo seletivo e o entendimento de que novos corpos, novas formas de pensar não podem acessar o mercado de trabalho.”

Ainda segundo ele, as empresas privadas têm obrigação de pensar em ações para aumentar a diversidade e a inclusão. “A empresa privada tem um papel social. É um instrumento que deve visar mais do que o lucro, cumprir uma tarefa coletiva de impulsionar o crescimento econômico da sociedade. O setor corporativo não é uma ilha isolada.”

Renata Hilário reconhece que o cenário tem mudado aos poucos, mas pede que as empresas tratem o assunto como prioridade. “A gente é capaz, a gente só precisa de uma chance.”

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