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O retrato do home office: mulher branca escolarizada predomina em casa

Análises do Ipea com dados da Pnad mostram que, dentre os 11% dos brasileiros que estão em home office, predominam atividades de escritório e tarefas intelectuais no Sudeste e em São Paulo

Por Anna Barbosa
Atualização:

Muito se discute sobre o home office, principalmente após grandes multinacionais adotarem o modelo remoto de forma definitiva. O mercado entra neste debate como se esta fosse a realidade da maior parte dos trabalhadores, quando na verdade apenas 11% dos brasileiros trabalharam em suas casas no ano passado, de acordo com os dados da Pnad Covid-19 analisados nas duas últimas Cartas de Conjunturas divulgadas pelo Ipea em julho e setembro deste ano. Os levantamentos e as análises mostram que o retrato do trabalho remoto é composto majoritariamente por mulheres, pessoas brancas e altamente escolarizadas, o que distancia o modelo da realidade de grande parte dos brasileiros. 

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A primeira nota foi divulgada pelo Ipea em 15 de julho com o objetivo de mensurar o trabalho remoto no País. Para isto, foram utilizados os dados da Pnad Covid-19, que foram colhidos de maio a novembro de 2020. Dentre os 83 milhões de pessoas ocupadas no ano passado, 74 milhões (88,9%) continuaram trabalhando normalmente e 9,2 milhões (11,1%) foram afastadas. Dentre os que continuaram ativos, 8,2 milhões estavam em home office (11% da população total ocupada e não afastada).

“Em termos de potencial de mercado de trabalho, estimávamos que fosse 16% da população em trabalho remoto. A média é de 11% no País. Eu concordo que existe um gap, mas não é tão grande assim comparado a outros países”, diz Geraldo Goés, especialista em políticas públicas e gestão governamental na Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas (Dimac) do Ipea. “Entendemos que são características laborais de cada atividade. Algumas são mais propícias ao trabalho remoto, como profissionais da educação, gerentes, tomadores de decisão.”

O professor de MBAs da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Mauro Rochlin vê os números do home office como muito expressivos. “Há um alto número de pessoas empregadas no setor agrícola, na indústria. A maior parte delas não está no setor administrativo e sim no chão de fábrica. É claro que nessa indústria tem uma parte no administrativo, mas a maior parte da empresa se concentra no setor produtivo.”

O perfil do trabalhador remoto é marcado por uma maioria feminina (56,1%), branca (65,6% são brancos e brancas), com Ensino Superior completo (76,6%) e que atua majoritariamente no setor privado (63,9%).

Manoela Mitchell, CEO e cofundadora da healthtech Pipo, adotou o home office definitivo para toda empresa desde o ano passado. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

“A maioria dos trabalhadores do home office estão no setor administrativo. Quem faz trabalho administrativo normalmente são pessoas com um maior nível educacional”, diz Rochlin. “Se você olhar a composição da população de nível superior, ela também é muito desigual se comparada com a maioria da população brasileira (negra). A presença de pretos e pardos entre a população com Ensino Superior é menor do que quando fazemos um comparativo com a população no geral. Então, a expectativa é que se tenha, portanto, já que o trabalho remoto é feito majoritariamente na área administrativa (que exige maior nível educacional), uma maior presença de brancos e brancas.”

A professora Carla Diéguez, socióloga do trabalho e coordenadora do curso de Sociologia e Política da FESPSP, concorda. "Isso demonstra que a educação é algo que tem classe. Ela é destinada para determinadas classes, principalmente o ensino superior, que vai te colocar em condições que vão te permitir acessos a alguns benefícios."

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Entre esses benefícios e regalias, estão equipamentos, completa Geraldo Góes. “Poucas pessoas tinham condições de exercer o trabalho remoto, porque não dependia só delas, mas também da própria empresa ter condições de colocar um computador, uma máquina na casa da pessoa.”

Foi o caso da startup de benefícios de saúde Pipo, que colocou todos os funcionários em home office e adotou a medida como definitiva. “Nós tomamos essa decisão em maio de 2020 e ela foi motivada por motivos diferentes. O primeiro é por ter acesso a talentos, para poder contratar pessoas de qualquer lugar além de São Paulo, e a segunda é para refletir nossos valores de autonomia. Ou seja, as pessoas terem autonomia para morar onde elas quisessem e ter flexibilidade”, conta Manoela Mitchell, CEO e cofundadora da Pipo Saúde.

Recorte por setores e Estados

No setor privado, segundo a pesquisa, destacam-se no trabalho remoto os setores de serviço (14,5%), educação (10,3%) e comunicação (7,7%). Já no setor público, as áreas com maiores índices de trabalho remoto são administrações públicas (14,4%), empregados dos governos estaduais (13,9%) e empregados do governo federal (7,8%). Atividades que ficaram abaixo da média nacional são agricultura (0,6%), logística (1,8%) e alimentação (1,9%).

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“Quando a gente olha para os dados dos setores que não fizeram home office, esses três setores são base para o nosso sustento. A gente precisa de alimentação, ou seja, comer o que setor agrário produz. Uma parcela significativa dos trabalhadores que estão dentro do setor possuem baixa escolaridade e, se não são analfabetos, possuem ensino fundamental incompleto ou completo”, diz Carla Diéguez.

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Ela continua explicando que o cenário é semelhante no setor de alimentação e logística. "Você precisa das pessoas para fazer a comida e para entregar. A logística entra nessa jogada também, principalmente com o sistema de delivery durante a pandemia. É um setor que vem se aprimorando com cursos técnicos e ensino superior, mas também tem muita gente com baixa escolaridade. Isso demonstra que, de forma geral, a nossa economia não se situa em serviços de alta tecnologia e produtividade. Ainda somos sustentados pela commodity, pelo setor agrário e por serviços de baixo valor agregado."

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Há também no estudo do Ipea um recorte por regiões. A maior concentração de pessoas em trabalho remoto está no Sudeste (58,2%), com 4,7 milhões de trabalhadores. A região é seguida pelo Nordeste, com 16,3%, e pelo Sul, com 14,5%.

"Essas segregações estão conectadas com quem nós somos em relação à sociedade", explica consultora Ana Bavon, CEO da B4People Cultura Inclusiva e integrante da Comissão de Ética, Diversidade e Igualdade do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE). "Se no Sudeste a gente tem um maior número de pessoas em home office, isso demonstra que está no Sudeste as maiores condições relacionadas às áreas executivas. As pessoas com ensino superior completo, brancas, que exercem uma função intelectual/executiva, estão no Sudeste (em grande maioria) e estão tendo a oportunidade de trabalhar de suas casas."

Para a empresa Pipo, o home office definitivo também foi uma oportunidade de aumentar a diversidade da empresa. "Conseguimos aumentar a diversidade com essa decisão, porque conseguimos contratar pessoas com deficiência (que teriam limitações de locomoção), pessoas com filhos (que teriam limitações para ficar fora o dia inteiro). Acabamos impulsionando a diversidade da empresa com essa ferramenta remota”, complementa Marcela Ziliotto, Head de People e Design Organizacional da empresa.

Para elas, o home office apenas reforçou os valores e a cultura da empresa, que são baseados na autonomia e liberdade. “A gente se denomina como uma empresa primariamente remota. Isso significa que as pessoas da Pipo podem trabalhar de onde elas quiserem e morar onde elas quiserem, dentro ou fora do Brasil, e que o nosso principal jeito de se comunicar e trabalhar é virtualmente, onde todos podem estar no mesmo lugar e ao mesmo tempo - principalmente quando falamos de trabalho síncrono.” 

Cargos operacionais

Na nota divulgada pelo Ipea em 31 de agosto, com a mesma base de dados da Pnad Covid-19, é possível observar os contrastes e similaridades de cada unidade federativa. O Estado de São Paulo é a quem tem o maior número de pessoas em trabalho remoto (35,5% do total), seguido pelo Estado do Rio de Janeiro (13,1%) e por Minas Gerais (8,2%).

Em todos os Estados percebe-se a predominância feminina no trabalho remoto, ainda que os homens sejam a maioria das pessoas ocupadas e não afastadas. No Maranhão, por exemplo, em média 36,3% das pessoas ocupadas e não afastadas eram mulheres, contudo elas representam 63,2% das pessoas em home office. 

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Quanto ao recorte de raça, há uma grande diversidade entre os Estados, com a predominância de pessoas negras no Norte e no Nordeste e o oposto no Sul, mas a participação de pessoas pretas ou pardas no trabalho remoto é menor em todas as unidades federativas. No Rio de Janeiro, 52,5% das pessoas ocupadas e não afastadas são negras, mas compõem apenas 34% dos trabalhadores em home office.

“Precisamos pensar que essas mulheres, que estão dentro do setor de serviços, de cargos executivos, são mulheres brancas. Obviamente, tiveram uma maior possibilidade de estar em home office. É todo um contexto que se repete. Onde estão as mulheres negras em sua maioria dentro das organizações? Em cargos operacionais, que não trabalham no computador e sim servindo café, abrindo a porta… Esses dados trazem uma transparência da péssima estrutura organizacional que temos relacionadas à inclusão”, reforça Ana Bavon sobre a desigualdade de raça e gênero.

Em todos os Estados, enquanto a maioria das pessoas ocupadas e não afastadas possuem escolaridade de nível educacional mais baixo, as pessoas em trabalho remoto possuem, na maioria, o nível superior completo. 

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