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Como uma greve de caminhoneiros moldará as eleições no Brasil

A paralisação tornou mais necessária e menos provável a sobriedade em política orçamentária

Por The Economist
Atualização:

Uma semelhança de normalidade retornou a São Paulo, maior cidade do Brasil, depois de uma greve de dez dias de caminhoneiros que paralisou o tráfego, fechou postos de gasolina e esvaziou as prateleiras dos supermercados. A parada anual do orgulho gay, realizada em 3 de junho, trouxe 3 milhões de pessoas para a Paulista, a principal avenida da cidade. Fãs de futebol lotaram bares para ver o time do Brasil disputar um amistoso contra a Croácia para a Copa do Mundo.

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Mas essa retomada da vida cotidiana é enganosa. A greve dos motoristas, convocada para protestar contra os preços mais elevados dos combustíveis, marca um começo ameaçador para uma temporada política que culminará nas eleições nacionais de outubro. Ela demonstrou o gosto dos brasileiros por políticas irresponsáveis ​​e deu um impulso às perspectivas do candidato mais radical na corrida presidencial, Jair Bolsonaro, um direitista ex-capitão do Exército.

Houve pedidos de intervenção militar durante a greve dos caminhoneiros Foto: FABIO MOTTA/ESTADÃO

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Também mostrou que o próximo presidente terá dificuldades em aprovar as reformas necessárias para manter a estabilidade econômica. A greve só terminou depois que Michel Temer, o impopular presidente do país, concordou em subsidiar o diesel por 60 dias e ajustar seu preço mensalmente, em vez de diariamente. Isso levou à renúncia, em 1º de junho, de Pedro Parente como presidente da estatal Petrobras, que elevou os preços em resposta ao aumento dos preços internacionais do petróleo e à debilidade do real. A greve pode se revelar um momento divisor de águas para as eleições, diz Pablo Ortellado, professor de políticas públicas da Universidade de São Paulo.

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Embora a rebelião dos caminhoneiros tenha tornado a vida miserável, 87% dos brasileiros a apoiaram, de acordo com o Datafolha, um instituto de pesquisas de opinião. Além de pedir combustível mais barato, muitos motoristas exigiram uma repressão à corrupção e ao crime, que dominam as manchetes dos governos recentes, incluindo o de Temer. A Petrobras tem sido um sinônimo de corrupção. Sob os chefes anteriores, era o canal para os enormes subornos pagos pelas empresas de construção aos políticos. Celso Rogério Gomez das Neves, mecânico que faz uma pausa em um bar de esquina em São Paulo, admite que a Petrobras aumentou os preços para compensar os custos mais elevados, mas também acha que seus executivos estavam “roubando do povo brasileiro”.

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Medo de Jair. Alguns motoristas penduraram faixas em seus táxis exigindo “intervenção militar” para enfrentar o crime e a corrupção. Grupos de extrema-direita dominaram a discussão online desses temas durante a greve, de acordo com uma análise feita por um laboratório de dados dirigido por Fabio Malini, especialista em cultura da internet da Universidade Federal do Espírito Santo. O conhecimento digital dos grevistas, que se organizaram através de milhares de grupos interconectados do WhatsApp, é um prenúncio do papel que a mídia social provavelmente terá nas eleições presidenciais, diz Malini.

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Tanto a ideologia quanto as táticas tecnológicas ressoam na campanha de Bolsonaro, cujo Partido Social Liberal tem pouca representação, mas cuja página no Facebook tem 5,5 milhões de seguidores. Ele tuitou seu apoio aos motoristas, mas se distanciou dos apelos por intervenção política do exército. O governo militar pode "voltar pelas cédulas", ou seja, através dos generais que ele planeja nomear para seu gabinete, se for eleito, disse aos repórteres em uma "marcha evangélica para Jesus" em 31 de maio.

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Nenhum candidato reflete melhor o humor anti-establishment do eleitorado. A proporção de brasileiros para os quais os “partidos políticos tradicionais não se importam com pessoas como eu” saltou de 69% em novembro de 2016 para 86% em março deste ano, segundo a IPSOS Global, uma empresa de pesquisas de opinião. A parcela daqueles que acham que o Brasil precisa de “um líder forte que vai quebrar as regras” subiu de 48% para 89%. Bolsonaro “alimenta o medo e a desesperança”, diz Cláudio Couto, cientista político. A opinião do candidato de que “um filho gay precisa de uma surra” dirige-se a conservadores em questões sociais. Sua abordagem de punhos de ferro contra o crime (ele daria à polícia um "cheque em branco" para atirar em canalhas) é popular entre um grupo maior. Como Donald Trump, ou Rodrigo Duterte nas Filipinas, ele ganha pontos por supostamente falar de forma clara. “Ele diz o que pensa”, diz um motorista de táxi em São Paulo, ao deixar um carro cheio de foliões vestidos com as cores do arco-íris na parada gay.

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Na primeira pesquisa nacional desde a greve sobre as intenções de voto para o primeiro turno da eleição presidencial, Bolsonaro saiu à frente contra três relações diferentes de potenciais concorrentes, com 21-25% dos votos. Três quartos de seus adeptos dizem que não vão mudar seu voto antes do dia das eleições. O único político que o supera é Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente de esquerda. Mas ele está preso por corrupção e é improvável que tenha condições de concorrer.

O rival mais próximo de Bolsonaro é Ciro Gomes, um ex-governador de centro-esquerda que ocasionalmente se parece com um populista. Ele recebe o apoio de 11-12% dos eleitores. Isso deveria aumentar se Lula o apoiasse. Geraldo Alckmin, o ex-governador de São Paulo, é apoiado por apenas 6 a 7% dos eleitores. Sua página no Facebook tem 900 mil seguidores, cerca de um sexto do número que o Bolsonaro tem.

Os defensores de Alckmin argumentam que ele se sairá muito melhor do que as pesquisas sugerem. Seu Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) tem grande número de cadeiras no Congresso, o que lhe dará direito a muito tempo de publicidade gratuita na televisão e dinheiro público para sua campanha. O PSDB pode acrescentar isso ao formar coalizões; na semana passada, abriu negociações no congresso com partidos de centro-direita. No início de agosto, os brasileiros perceberão que Alckmin, que formou anestesista, é um “médico” para os problemas econômicos e políticos do país, diz Luiz Felipe d’Ávila, consultor. Os eleitores "são mais racionais do que irracionais", acredita ele.

Os mercados financeiros esperam que isso seja verdade. Alckmin é o único dos principais candidatos com entusiasmo pelo programa de reformas econômicas iniciado por Temer, que ajudou a tirar o Brasil de sua pior recessão de todos os tempos. Temer aprovou uma emenda constitucional para congelar os gastos do governo em termos reais e liberalizar o mercado de trabalho. Mas ele não conseguiu conter os gastos com aposentadorias, a principal ameaça a longo prazo para o orçamento. A redução nos preços do diesel aumentará a carga fiscal que o próximo presidente herdará. Os caminhoneiros tornaram mais urgente que o Brasil eleja um reformador como presidente em outubro. Mas também tornaram menor a probabilidade de que isso ocorra./ TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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