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Novo Bolsa Família é como árvore de Natal cheia de bolas que pode envergar e cair, diz ex-secretária

Para a socióloga Letícia Bartholo, uma das maiores conhecedoras do programa, medida provisória não enfrenta os problemas essenciais do combate à pobreza, que são a ampliação da cobertura e dos valores do benefício

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Por Adriana Fernandes
Atualização:

BRASÍLIA - Ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania do governo federal, a socióloga Letícia Bartholo compara o programa Auxílio Brasil, que vai substituir o Bolsa Família, a uma árvore de natal cheia de bolas de Natal e penduricalhos que pode acabar caindo. Ao Estadão, Letícia, que é uma das maiores conhecedoras do Bolsa Família no País, diz que vê com enorme preocupação o número excessivo de benefícios adicionais que o governo cria na medida provisória (MP) enviada esta semana ao Congresso. 

“Começa a inserir no mesmo várias ações ao ponto que o programa de combate à pobreza perde o seu objetivo-chave e a árvore de Natal fica tão cheia de bolas que enverga e cai”, diz. Para ela, a MP não enfrenta os problemas essenciais do combate à pobreza, que são a ampliação da cobertura e dos valores do benefício.

Letícia Bartholo, ex-secretária adjunta de Renda de Cidadania Foto: Reprodução

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O presidente Jair Bolsonaro prometeu um benefício de R$ 400 é factível?

Se pensarmos em benefício médio de R$ 400 para quem hoje está no programa, que são 14,7 milhões de famílias, precisaria de cerca de R$ 70 bilhões. Nós sabemos que essa cobertura está abaixo do esperado porque a linha de pobreza não é reajustada há muito tempo. Desde 2018, a linha de extrema pobreza está em R$ 89 e de pobreza em R$ 178. Sem reajuste e com uma perda grande de valor real do benefício. Hoje, o benefício está em torno de R$ 190 por família.

Para aumentar o programa para 17 milhões de famílias, como o governo anunciou, com R$ 400, quanto será preciso?

Fazendo um cálculo simples, de cerca de R$ 80 bilhões. Precisaria arrumar R$ 50 bilhões a mais para o Bolsa Família. O fato é que a MP não traz nenhuma informação a mais sobre linha de pobreza e valor de benefício. Seja do valor do benefício do Auxílio Brasil (o básico) e dos demais benefícios propostos.

Na prática, o que isso significa?

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Vejo o Bolsa Família entre frangalhos e penduricalhos. A MP não enfrenta os problemas essenciais, que são a ampliação da cobertura, dos valores e a defasagem dos benefícios, já que eles não têm atualização monetária desde 2018. Frangalho porque a sua capacidade de mitigar a pobreza foi consumida pelo não reajuste e pela inflação. Penduricalho porque a MP traz outros novos benefícios com as mesmas características: sem referências de valores e muitas vezes qual o tipo de transferência, se será mensal ou anual, como no caso do benefício que eles chamam de inclusão produtiva urbana. Existe uma dificuldade de avaliar a própria MP porque não temos parâmetros adequados para saber qual é impacto orçamentário e sobre a pobreza e desigualdade. O que tem na MP são basicamente intenções de benefícios.

O que é precisofazer para o programa ter efeito de diminuir a pobreza?

Ampliar a linha de pobreza, deixando ele em torno R$ 260. Estamos com uma linha muito defasada e com valores de benefícios que perderam em cinco anos cerca de 30% do seu valor real. As duas medidas essenciais para o programa Bolsa Família hoje são ampliação de coberturas e valores.

Como está a fila do programa?

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Vamos lembrar que há duas filas hoje. A fila das pessoas que fariam jus ao programa, que seguem os critérios do Bolsa, mas recebem o auxílio emergencial. E tem também famílias que fazem jus e não recebem nem o Bolsa nem o auxílio. As últimas informações que eu tenho, de abril, são de que teríamos cerca de 1,2 milhão de famílias na fila do Bolsa e cerca de 400 mil famílias que estão sem Bolsa e sem auxílio. Ou seja, estão sem nada.

Essa fila tende a continuar mesmo com o aumento do benefício?

Sim, tende a continuar. Se pensar só nesse 1,2 milhão de famílias. Sem levar em conta que a linha de pobreza está defasada e quem entrou na pobreza de abril até aqui.

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Quanto seria preciso para abarcar as famílias necessitadas?

Se a gente quiser começar a provocar reduções na extrema pobreza significativas, precisaria em torno de R$ 120 bilhões. Nós poderíamos ter um benefício focalizado que beneficiaria cerca de 27 milhões de famílias.

Esse valor de financiamento não está à disposição da realidade no momento do País?

Não por ora. Para chegarmos até ela, outras questões teriam que ser revistas, como reforma na tributação. A reforma tributária não está tocando nesse ponto e não há orçamento disponível para que cheguemos até lá. A questão que se impõe agora é o quão mais próximo a gente pode chegar. Dado que o Orçamento está comprometido, temos que entender que quanto mais se cria penduricalhos, mais se tira domesmo bolo orçamentário, que precisa atuar no essencial.

Nesse sentido, não é boa ideia criar tantos novos benefícios como traz a MP?

Exato. Deveria privilegiar o essencial, que é a ampliação da cobertura e dos valores do benefício. Se não está tirando de um benefício e linha de pobreza já baixas para pagar um bônus de inclusão produtiva urbana, rural, ou pagando vagas em creche com esses recursos. Um fenômeno que vemos agora muito apontado na literatura sobre programas de transferência de renda, sobretudo na América Latina, é o da árvore de Natal. Começa a inserir no mesmo várias ações ao ponto que o programa de combate à pobreza perde seu objetivo-chave e a árvore fica tão cheia de bolas que enverga e cai. Outras palavras, é como se estivesse subsumindo toda a proteção social a um programa específico. Pode sair do novo programa um frangalho ou penduricalhos ou talvez ambos a depender da não possibilidade de não obtenção orçamentária.

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